Retrato agridoce dos EUA, "Álbum de Família" tem Meryl Streep e Julia Roberts
"A vida é muito longa", diz o patriarca Bev (Sam Shepard). Ele cita o poeta norte-americano T. S. Elliot, mas também explica que este só foi o primeiro a se dar ao trabalho de colocar a frase no papel, pois, no limite, todo mundo já sentiu isso em algum momento. É essa sensação, melancólica e definitiva, que permeia os personagens de "Álbum de Família", adaptação da peça de Tracy Letts, que rendeu ao dramaturgo o prêmio Pulitzer em 2008.
Em sua obra --que inclui "Bug" (cuja adaptação cinematográfica no Brasil foi lançada como "Possuídos") e "Killer Joe", também transformada em filme-- Letts é o dramaturgo da paranoia e das estruturas que desabam, quando deveriam ser a rede de proteção do indivíduo diante do mundo. Aqui, ele mira na base da sociedade, a família, e, provando que Lev Tolstoi não estava errado, as famílias infelizes aqui são bem infelizes ao seu modo.
Os Weston estão diante de um dilema que, finalmente, os une, e traz à tona suas diferenças e ódio mútuo acumulado por décadas. Bev desapareceu sem deixar notícias e sua filha Ivy (Julianne Nicholson), a única que mora na mesma cidade que os pais, no Meio-Oeste dos EUA, chama suas irmãs, a mais velha, Barbara (Julia Roberts, indicada ao Globo de Ouro), e a caçula, Karen (Juliette Lewis), para ajudar a controlar a mãe delas, Violet (Meryl Streep, indicada ao Globo de Ouro).
Trailer legendado de "Álbum de Família"
Obviamente o que interessa aqui é a crise. E crise é o que não falta em "Álbum de Família". Violet é uma metralhadora giratória, sem pudor em ofender marido, filhas ou a empregada, uma nativa chamada Johnna (Misty Upham), a quem Violet insiste em chamar de "índia".
É irônico e, ao mesmo tempo, sintomático que a matriarca esteja sofrendo de um câncer na boca, que lhe dá sensação de queimação quase em tempo integral. É também a desculpa de que ela precisava para continuar a se entupir de pílulas de todos os tipos e cores.
Se, por um lado, a trama faz emergir todos os tipos de drama que são óbvios dentro do ambiente familiar --disputas entre irmãos, decepções e cobranças--, por outro, Letts é capaz de cogitar uma estrutura que vai além da família burguesa, que acaba sendo implodida por seus próprios membros, um a um.
É como se essa não tivesse mais recursos para fornecer bases para o ser humano da contemporaneidade. Segredos do passado e diferenças, que poderiam ser conciliáveis, são o estopim, e fagulhas e pedaços voam para todos os lados.
Barbara está em crise com o marido, Bill (Ewan McGregor), professor universitário interessado em outra mulher e incapaz de lidar com a filha de 14 anos, Jean (Abigail Breslin).
O trio de filhas de Bev e Violet é vítima constante das críticas da mãe, para quem uma mulher é incapaz de ser bonita depois de uma certa idade - e suas filhas já estão todas nessa fase. Mas esse talvez seja o menor problema ao se lidar com Violet, em quem as pílulas aumentam o potencial de sarcasmo e violência emocional.
Outra atriz que não Meryl Streep talvez não encontrasse o que ainda resta de humanidade nesse monstro. E nem é na doença que ela mostra a sua fragilidade, é no seu passado, nas frustrações, e na incapacidade de lidar com algumas questões.
Embora as presenças de Meryl Streep e Julia Roberts pudessem servir de pretexto para polarizar o filme entre elas, Letts e o diretor John Wells são capazes de algo raro: equalizar o tamanho e peso dos papeis, transformando a obra num drama familiar em que todos têm praticamente a mesma importância.
"Álbum de Família" se insere numa tradição do teatro e do cinema norte-americanos, encontrando seus pares em Eugene O'Neill (especialmente em "Longa Jornada Noite Adentro") e Tennessee Williams e retratando um mundo contemporâneo onde não resta espaço para dinastias familiares, e a decadência do modelo burguês é o momento da fragmentação, da incapacidade de se ver o todo - daí os pequenos dramas individuais que compõem um painel mais vasto.
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