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"O Doador de Memórias" é mais uma distopia nos moldes de "Jogos Vorazes"

Alysson Oliveira

Do Cineweb, em São Paulo

10/09/2014 16h04

O romance de Lois Lowry no qual "O Doador de Memórias" é baseado pode ser mais antigo que séries como "Jogos Vorazes" e "Divergente", mas sua adaptação tardia levou mais de 20 anos para ser feito faz parecer que é mera cópia de outros, ao falar de uma sociedade distópica do ponto de vista do protagonista adolescente. O longa estreia no Brasil nesta quinta-feira (11).

A distopia é um gênero que serve muito bem para a literatura infanto-juvenil, afinal, pode existir algo mais próximo de uma distopia pessoal do que essa época da vida, quando os hormônios entram em ebulição, a gente não compreende direito o mundo, o mundo não nos compreende, e tudo parece fora do lugar, de tal forma que jamais entre no prumo novamente.

Num plano maior, no entanto, essa vertente pode fazer conjecturas sobre o nosso presente —afinal, uma ficção científica, por mais futurista e mirabolante (o que nem é o caso aqui) que seja, está falando de nosso aqui e agora.

No filme dirigido pelo australiano Phillip Noyce ("O Colecionador de Ossos"), uma sociedade, à primeira vista utópica, se revela uma distopia à lá "Jogos Vorazes" e "Divergente" —infelizmente, o longa está mais próximo do segundo do que do primeiro. Os três trazem alguns elementos estruturais parecidos: num mundo deformado, jovens são, de um modo ou de outro, escolhidos numa cerimônia para o sacrifício e (coincidentemente) o protagonista não apenas é o eleito, como se rebela contra o sistema.

Em "O Doador de Memórias", aos 16 anos, os jovens concluem a escola, e recebem uma profissão diante de todos os membros da comunidade. Ao protagonista, Jonas (Brenton Thwaites, de "Malévola"), cabe a posição de doador de memórias. A questão nessa sociedade do futuro, que permitiu a formação dessa falsa utopia, é a ausência de lembranças, mas uma pessoa precisa guardar todas as memórias do mundo. Aqui, o papel é feito por um ancião (Jeff Bridges), que precisa passar seus preciosos momentos ao garoto. A transferência se dá como uma conexão, quando se dão as mãos.

É claro que ao descobrir sobre o passado, Jonas se dá conta do mundo desbotado em que vive. Para traduzir isso em imagem o diretor opta por contrastar um mundo do presente dos personagens em cores pálidas, quase um preto e branco, em contraste do colorido vibrante do passado, das lembranças. É uma das poucas boas sacadas do filme que, em si, não parece ter muitas ambições —ou se as tem, elas foram enterradas muito bem.

Um dos preços pela suposta perfeição do presente é a supressão da linguagem. As palavras —assim como as emoções, alguns animais e plantas— deixam de existir, uma vez que aquilo que representam não existe mais. No caso de tomar um elefante de pelúcia por hipopótamo —como acontece aqui— não é lá grande coisa, mas a medida em que sentimentos complexos são extintos e seus nomes também, a problemática toda se torna preocupante.

E quando Jonas usa palavras como amor e família, sua mãe (Katie Holmes), manda-o reformular a frase. Aliás, essa parece ser a única função da personagem cuja interpretação da atriz faz justiça à nulidade da figura.

Essa sociedade em preto-e-branco é coordenada por uma anciã, interpretada por Meryl Streep, que parece ter aceitado o papel apenas pela diversão. Já Bridges que, por anos, deteve os direitos do romance, e cogitou adaptar com seu papel (Lloyd Bridges, morto em 1998), faz o que pode, mas os personagens (isso não acontece apenas como ele) carecem de nuances, de densidade, de motivações mais profundas do que aquelas do roteiro de Michael Mitnick e Robert B. Weide.

Como todo bom filme pra adolescentes que se preze, esse vem com uma lição ao final, e, no caso, envolve não apenas a valorização das memórias, das perdas e das dores (pois é por meio delas que crescemos), mas também como o cinema pode ser limitado quando quer tratar de uma questão se repetindo, e cada vez com menos sagacidade.

*As opiniões expressas são responsabilidade do Cineweb