"Birdman" usa febre dos super-heróis para satirizar o cinema atual
A comédia "Birdman (ou a Inesperada Virtude da Ignorância)", do mexicano Alejandro González Iñárritu, que estreia no Brasil nesta quinta (29), desconstrói, com fôlego e humor invejáveis, os bastidores de uma indústria do entretenimento que produz em série filmes sobre super-heróis.
E faz isso por meio da história de um veterano ator, Riggan Thomson (um Michael Keaton em forma dramática nunca vista), que tenta superar seu passado na pele de um herói-pássaro produzindo para si mesmo uma peça teatral em que busca prestígio intelectual, encenando texto de Raymond Carver.
Iñárritu sai de sua zona de conforto, criando um filme de temperatura emocional muito diferente de seus celebrados "Amores Brutos", "21 Gramas" e "Biutiful". Assim como Michael Keaton, que se expõe, como seu personagem, de modo franco e total.
Mesmo para aqueles que não admiram particularmente o trabalho do ex-Batman como ator, "Birdman..." é uma grata surpresa. Não por acaso, o filme vem colecionando prêmios, como o de melhor elenco no Sindicato dos Atores dos Estados Unidos e nove indicações ao Oscar, incluindo as cobiçadas melhor filme, diretor e ator.
As premiações são uma consagração para os muitos riscos corridos tanto pelo diretor, ao abandonar o registro um tanto estetizante de seus trabalhos anteriores para criar um filme que mistura vários gêneros e nunca facilita a vida do espectador sendo palatável, além de oferecer chances de ouro a cada um de seus atores de ultrapassarem seus limites.
Keaton se desnuda aqui, metafórica e literalmente, numa caminhada em plena Times Square de Nova York, para agarrar visceralmente este papel de um ator que tenta livrar-se da sombra de ter sido intérprete de um super-herói (detalhe até autobiográfico na vida de Keaton) e de outros fantasmas pessoais e profissionais, dando-lhe a oportunidades de despojar-se da própria imagem e atingir excelência de interpretação.
Ao seu lado, Emma Stone, Edward Norton e Amy Ryan também dão o sangue em interpretações de gala.
O que "Birdman..." tem de mais interessante é a integridade de sua confecção. A câmera inquieta nos bastidores de um teatro segue personagens - especialmente o protagonista - de modo nervoso em longos planos-sequência, o que cria uma correspondência total com sua instabilidade emocional, com sua ansiosa procura.
É o paradigma de um labirinto e também desse "huis clos" do teatro, onde os atores fazem a sua morada, digladiam-se, movem suas próprias fronteiras. Algo como um sofisticado zoológico humano que a câmera, como uma lente de laboratório de emoções, tenta capturar.
Melhor ainda é incluir-se a referência do cinema de super-herois, o grande veio lucrativo da indústria hoje, para esquartejá-lo, expondo o dilema do protagonista de abandonar um sucesso que se tornou opressivo, uma verdadeira prisão.
Na pele do seu herói-pássaro, ele tudo pode - na tela. Fora dela, é famoso, reconhecido ostensivamente nas ruas, mas não evita o vazio, a sensação de que exerce uma função descartável dentro da máquina do entretenimento que ele agora tenta superar com uma montagem de peça consagrada no meio intelectual.
O reconhecimento do meio intelectual é outra coisa - a implacável crítica do jornalão "The New York Times" (Lindsay Duncan) tem outros planos. Mais dramático ainda é o custo de tudo isto na vida pessoal: casamentos desabam, relacionamentos se sucedem, e a relação com a filha (Emma Stone) é tudo menos tranquila.
Notável como Keaton colocou tudo a serviço de seu personagem - inclusive sua história pessoal. De várias maneiras, ele é o ator perfeito para o papel e não nega fogo, mostrando-se enérgico, alquebrado, desesperado, louco, num registro dinâmico e sofisticado, difícil de manter. O papel de uma vida, aliás, independente de qualquer premiação.
Ao seu lado, os coadjuvantes também têm muito nas mãos. Norton, como Mike, o ator prestigiado, mas fundamentalmente inseguro, que entra no nicho de Riggan com o poder tanto de eletrizar a montagem quanto de colocar todo o projeto a perder. Emma, como a filha problemática Sam, que progressivamente se afirma em torno de um contexto muito desfavorável. Amy, como a ex-mulher Silvia, que tem pelo menos duas grandes cenas para lembrar a grande atriz que é.
A grande aposta de "Birdman..." está em envolver o espectador a entrar na sua espiral de emoções, com direito a uma certa perplexidade em torno de sequências com um apelo mágico, surreal. Tudo contribui para o tempero agridoce do filme, que tem energia para entrar na veia.
E, se o Festival de Veneza, em que "Birdman..." foi a atração de abertura, em setembro passado, der sorte, como deu a "Gravidade" (sua atração de abertura em 2013), de repente leva até o Oscar. Outra coincidência: os diretores dos dois filmes são mexicanos.
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