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ESTREIA-Dirigido por iraniana, "Garota Sombria" traz conflito entre tradição e modernidade

16/12/2015 16h37

SÃO PAULO (Reuters) - “Garota Sombria Caminha Pela Noite” deverá, em primeiro lugar, chamar atenção pelo lado inusitado: uma comédia dramática iraniana pop em preto-e-branco sobre uma jovem vampira.

Esqueça o tempo contemplativo dos famosos filmes de diretores iranianos – “O Gosto da Cereja” e “Five”, de Abbas Kiarostami, talvez os exemplos mais contundentes desse estilo -, pois este tem a temida influência do Ocidente. Mas sua roteirista e diretora, Ana Lily Amirpour, não é ingênua, usando ferramentas tipicamente hollywoodianas para falar do seu próprio país.

A protagonista, uma garota sem nome, é interpretada por Sheila Vand, cujos grandes olhos se destacam ainda mais no preto-e-branco do filme. Eles, aliás, parecem sempre melancólicos e questionadores. Já seu interesse romântico será Arash (Arash Marandi), uma espécie de James Dean iraniano, que logo na primeira cena perde seu carro para o traficante que fornece drogas a seu pai (Marshall Manesh).

A vampira vê os fatos e logo vinga a perda do rapaz, por quem, embora não o conheça, acaba por se interessar. Ao sugar o sangue do traficante até a morte, ela também faz um favor a uma prostituta (Mozhan Marnò), a quem ele explorava.

É num submundo de sombras e ambiguidade – o que explica a fotografia P&B – que se dá a narrativa, num lugar chamado Bad City – uma piscadela a “Sin City”, de Frank Miller. Esse é um lugar sem lei, onde corpos em decomposição jazem numa grande vala a céu aberto e nunca se ouve falar de justiça.

A justiça aqui é feita pelas próprias mãos dos interessados. A garota, então, assume seu destino de anjo vingador e sai pela noite sugando sangue. Seu gosto por batom escuro, suas caminhadas pela noite e o pôster de Madonna na parede de seu quarto dão uma dimensão de quem é essa personagem. Ela é a jovem iraniana que deverá cuidar de sua vida por si mesma, sem um homem ditando regras. É um caminho difícil e tortuoso, parece dizer a diretora Ana Lily, mas que vale a pena ser enfrentado.

O problema é que seu James Dean parece mais ligado a tradições arcaicas e guiado pela honra masculina. Com seu charme, também melancólico, ele a conquista – num momento que pode parecer uma virada ideológica do filme, mas não é bem por aí, como se revelará até o final. A diretora não está interessada em disputa de superioridades, mas em igualdade de gêneros.

É preciso que a vampira ceda um pouco ao seu herói romântico para que ele perceba que precisa mudar se quiser ficar ao lado dela. Numa cena, mais erótica do que qualquer outra coisa, ele fura as orelhas dela para colocar um par de brincos. É uma cena delicada, e, ao mesmo tempo, reveladora. É o símbolo da união entre eles. Ao lado dele, ela até deixa seus instintos sanguessugas de lado.

Ana Lily é uma jovem iraniana que vive nos EUA – o filme, aliás, apesar de falado em persa, foi filmado na Califórnia –, traduzindo em suas personagens a dialética entre o secular e o fantástico. A fotografia em preto-e-branco, assinada por Lyle Vincent, remete a filmes antigos, mas o contraste acentuado não podia ter um visual mais contemporâneo.

O tom de fantasia, por sua vez, contrasta com a situação de opressão das mulheres no Irã. E também a própria vampira, que, apesar de sua atitude transgressora, usa um chador preto durante a noite.

Fica então a questão: é possível conciliar a tradição com a modernidade? Aproveitando, é claro, o que há de melhor nos dois. A diretora é perspicaz e não tende a apontar respostas, mas a alimentar a discussão, ao mesmo tempo, fazendo grande cinema.

A vampira não é atormentada por sua imortalidade – pelo contrário, sabe tirar proveito disso. E numa cena, simbolicamente ressonante, ela atormenta um garotinho, insistindo em perguntar se ele é um menino bonzinho. O garoto, por sua vez, fica assustado, tenta fugir, e quando olha, lá está ela novamente impedindo o seu caminho.

São as jovens contemporâneas anunciando o sinal de um novo tempo – não há como fugir. E a personagem conclui a cena dizendo ao menino: “Até o fim de sua vida, eu vou te observar, para ver se você é mesmo um menino bonzinho“. Assim, o filme parece dizer que não há saída, o movimento dessa mudança, desse empoderamento feminino, não admite mais um retrocesso.

(Por Alysson Oliveira, do Cineweb)

* As opiniões expressas são responsabilidade do Cineweb