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Ficha completa do filme

Drama

A Erva do Rato (2008)

Resenha por Sérgio Alpendre

Sérgio Alpendre

Da redação 31/12/2010
Nota 4

Júlio Bressane já declarou publicamente sua admiração por Manoel de Oliveira, diretor português que completou 102 anos agora em dezembro, e que está quase sempre presente na Mostra Internacional de São Paulo.

Na verdade, nem seria preciso declaração alguma. Basta ver o primeiro plano de ''Cleópatra'', com o Farol de Alexandria sendo enquadrado ao som de barulhos da natureza e um belo mar ao fundo. A diferença, no caso, é que Oliveira nunca filmou em scope, o formato super retangular que Bressane adotou com a ajuda de Walter Carvalho.

Em "A Erva do Rato" a semelhança ressurge, novamente em scope, novamente abrindo com o mar (Bressane frequentemente usa imagens do mar em seus filmes), antes de um movimento de câmera em direção ao cemitério. Lá vemos Alessandra Negrini frente a uma lápide, Selton Mello frente a outra, mas de costas para ela, e à certa distância (a câmera também os observa à distância). Ambos logo se conhecerão, num momento incrivelmente ''oliveiriano'', e ele ficará completamente absorvido pelo corpo dela enquanto mediado pela lente de sua câmera fotográfica. Mesmo depois de morta, ela continua despertando o desejo do jovem fotógrafo, num movimento que causou risos nervosos (e alguns de desprezo também), nas plateias brasileiras.

Não seria exagero considerar Selton Mello como o correspondente brasileiro do lusitano Ricardo Trepa, e Alessandra Negrini como a Leonor Baldaque tupiniquim.

A ironia é que em seu mais recente filme, ''O Estranho Caso de Angélica'', Oliveira explora um tema muito parecido: Trepa, neto de Oliveira, é um fotógrafo que fica obcecado por uma falecida ao captá-la com sua máquina. Mas enquanto o diretor europeu busca inspiração em Méliès e na literatura fantástica, o brasileiro mescla dois contos do realista Machado de Assis (se é que se pode reduzir assim esse grande escritor).

As semelhanças entre os diretores vai além. Na primeira conversa entre Negrini e Mello, ela confessa ter furtado uma jóia, como a rapariga do penúltimo filme de Oliveira, "Singularidades de uma Rapariga Loira". Os tons de cores também são parecidos, assim como a predileção por sombras que invadem o quadro.

Há diferenças, também, a maior parte delas remete ao estilo de Bressane, muito mais ousado e demolidor, ainda que seus dias mais radicais sejam mesmo coisa do passado. Após os créditos estão várias cenas fragmentadas, algumas mostrando a equipe, algo que até os anos 1990 estariam no miolo do filme todo, a confundir a cabeça dos espectadores, obrigando-os a terminar a montagem por si mesmos.

O ritmo é mais lento que o de ''Cleópatra'', mas não tanto quanto o de ''Tabu'', por exemplo. E é salutar a ideia nos dois últimos filmes de pegar atores globais para esse tipo de cinema. Causa um efeito devastador, contribuindo para a estranheza sempre almejada pelo diretor.

A relação curiosa que se desenvolve entre Mello e Negrini, o homem que registra e descobre algo novo com sua lente, e a mulher que só a revela por causa da lente, passa também para o espectador. O estranhamento de quem está diante da tela, vendo as imagens bizarras e muito bem compostas de Bressane, por sua vez, encontra um eco no estranhamento do personagem de Mello diante do corpo imóvel e desnudo, que parece esconder um mundo para o qual ele não tem acesso, a não ser pela mediação de uma lente.

A radicalização que surge nas cenas finais não vai surpreender o entusiasta do diretor, mas pode chocar o espectador acostumado com o conservadorismo temático e estético do cinema predominante. Esperemos que os espectadores que descubram este DVD queiram ser tomados pelo choque e pelo estranhamento. Só assim poderão desfrutar a obra poderosa que é ''A Erva do Rato''.

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