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"Eu olhei para a música como se ela fosse uma carta de amor", diz Karim Aïnouz sobre adaptação de canção de Chico Buarque

Alessandra Negrini em cena do filme "O Abismo Prateado" - Divulgação
Alessandra Negrini em cena do filme "O Abismo Prateado" Imagem: Divulgação

NATALIA ENGLER

Da Redação

12/10/2011 07h00

Depois de retratar um personagem quase folclórico do Rio de Janeiro, uma mulher que decide rifar seu corpo e um geólogo sem rosto que viaja pelo sertão, Karim Aïnouz se volta para uma canção de Chico Buarque para construir seu novo filme.
 

Em “O Abismo Prateado”, o diretor cearense se inspira na música “Olhos nos Olhos” para narrar a história de uma mulher abandonada, vivida por Alessandra Negrini.

Assim como os trabalhos anteriores de Aïnouz – “Madame Satã” (2002), “O Céu de Suely” (2006) e “Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo” (2009) – o filme foi exibido primeiro no exterior , no Festival de Cannes 2011, e estreia no Brasil dentro da programação do Festival do Rio, nesta quarta-feira (12).

Em entrevista ao UOL Cinema, o diretor contou como foi adaptar um clássico do cancioneiro nacional, além de falar sobre a experiência de trabalhar com uma atriz conhecida do público e sobre seus novos projetos.

UOL - “O Abismo Prateado” é inspirado na música “Olhos nos Olhos”, de Chico Buarque. Como foi o processo de construir um filme a partir de uma canção?
Karim Aïnouz -
Os filmes que eu já tinha feito até então, três longas e alguns curtas, sempre tinham a presença de canções que eram muito importantes, que eram muito fortes. E eu fiquei com vontade de, a partir de uma canção, fazer um filme. Mas essa canção específica é uma música que eu adoro, que conhecia muito, que ouvi durante muitos anos, por diferentes razões. Eu olhei para a música como se ela fosse uma carta de amor. Porque, quando você olha para o texto, ela tem uma narrativa, ela conta uma história e ela parece que foi escrita quase como uma carta de amor. Pensei “como é que você escreve uma história a partir de uma carta do amor?”. Então, as perguntas eram “quem escreveu essa carta?”, “pra quem essa carta foi escrita?”, “que história está presente nessa carta?”. Foi a partir daí que o roteiro foi desenvolvido. Tudo isso foram questões que vieram à tona na hora de começar a escrever o roteiro. E o próprio título da canção, “Olhos nos Olhos”, é uma expressão clássica – quando você olha nos olhos de alguém, é porque você tem coragem de dizer a verdade para aquela pessoa, você está respeitando o outro. E tem uma coisa na música que é muito forte, que é o fato de que ela conta a história de uma mulher que foi abandonada sem nunca ter tido a chance de olhar no olho da pessoa que a abandonou. Então, são duas questões que estavam presentes na canção, que nortearam a história que foi filmada.

UOL - Por que a escolha dessa música específica?
Aïnouz -
Foi um pouco respeitando umas escolhas que eu tenho feito nos últimos anos. Em todos os filmes sempre tem uma presença muito forte de canções românticas. Às vezes até ultrarromânticas. Na realidade, eu escolhi essa canção porque ela está muito dentro desse universo de um cancioneiro romântico, que não tem vergonha de dizer o que é. E também muito por uma admiração ao trabalho do Chico, à obra dele. E essa canção específica tinha uma versão com a Bethânia que eu era muito fã, que eu ouvi muito. Foi uma tentativa de fazer um filme que fosse ainda mais assumidamente romântico que o último.

UOL - Você chegou a encontrar com o Chico para falar sobre o filme?
Aïnouz -
Não, de propósito. Eu achei que foi melhor e ele foi muito respeitoso com relação a isso. Eu nem conhecia ele.  Eu conheci o Chico depois que o filme ficou pronto. Foi um trabalho em que eu tive muita liberdade. Eu acho que, no momento em que eu começasse a conversar com ele, eu teria uma certa reverência ao autor, e isso complica um pouco o trabalho de adaptação, seja qual for a obra.
 

UOL - “O Abismo Prateado”  tem alguma diferença ou semelhança significativa em relação aos seus outros filmes?
Aïnouz -
Eu acho que tem algumas semelhanças. É um filme que continua algumas pesquisas que eu vinha fazendo nos outros filmes. É um filme de personagem, que acompanha a trajetória de um personagem – durante uma noite, no caso de “O Abismo Prateado”. Eu acho que isso é uma coisa que está presente nos outros filmes. É quase o gênero retrato das artes plásticas dentro do cinema. “Madame Satã” é o retrato de um personagem; “O Céu de Suely”, apesar de ser mais narrativo, é o retrato da Suely; o “Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo” também, apesar de ser um filme em que você nunca vê o ator, nunca vê o personagem, ele é também uma carta de amor escrita por um personagem só. Eu acho que tem isso de comum, além do fato de que tem uma protagonista mulher, que já estava presente em “O Céu de Suely”, mas também na série que eu fiz para a HBO, “Alice”. Acho que é também o desejo de fazer um cinema que tenha história, que tenha narrativa, mas que seja um cinema mais de sensações. E esse filme é um pouco isso. É um instantâneo de uma mulher abandonada, durante poucas horas.

UOL - É diferente ter como protagonista uma atriz já bastante famosa, como a Alessandra Negrini, em vez de uma atriz menos conhecida, como em “O Céu de Suely”?
Aïnouz -
É sim. Eu acho que uma das coisas mais complexas quando você trabalha com alguém conhecido – e a Alessandra é, ela já foi protagonista da novela das oito – é como você apaga isso para ver só o personagem. É um grande desafio. Eu acho que tem um personagem, que é a pessoa, e um personagem que você escreveu, que é um personagem muito forte. O maior desafio no caso da Alessandra foi esse, da gente tentar esquecer que era a Alessandra Negrini que estava ali na frente. Mas eu acho que tem uma coisa específica da Alessandra, em relação a essa questão de ser conhecida ou não. Ela é uma pessoa que está fazendo isso há muitos anos. Ela tem uma experiência, uma desenvoltura na maneira de atuar que é também bem diferente de quando você trabalha com alguém que não tem a experiência dela.

UOL - Seus filmes costumam ser apresentados primeiro em festivais estrangeiros antes de estrear no Brasil. Exibir seu trabalho no país tem uma emoção diferente?
Aïnouz -
Eu acho que tem sim. É claro que a primeira vez que você passa o filme em qualquer lugar, seja num festival fora, seja num festival aqui, é uma emoção muito forte. É uma coisa que você não consegue reproduzir jamais. Mas, especificamente no Festival do Rio e na Mostra de São Paulo, eu tenho memórias muito bacanas. Tem uma memória muito rica de todas as experiências, tanto aqui quanto em São Paulo. E tem uma emoção enorme porque é uma plateia muito diferente. Quando você passa um filme num desses festivais grandões – Berlim, Cannes, Veneza – é um plateia que, bem ou mal, é da indústria cinematográfica – críticos, produtores, pessoas ligadas de muito perto à questão da indústria. E esses dois festivais – que são os que eu conheço mais aqui no Brasil, porque meus filmes sempre passaram neles – têm um calor muito diferente, têmuma fome pelo filme, que é uma fome que a gente tem por cinema brasileiro em geral, o que dá um tom muito diferente às exibições, mesmo que você tenha exibido antes em festivais no exterior.
 

TEASER DO FILME "O ABISMO PRATEADO"

UOL - Você já está trabalhando em algum novo projeto?
Aïnouz -
Eu estou trabalhando num projeto novo, “Praia do Futuro”, que a gente já está desenvolvendo há alguns anos, e que deve entrar em filmagens em março do ano que vem. É uma história que se passa entre Fortaleza – de onde eu sou –, numa praia de Fortaleza chamada Praia do Futuro, e Berlim. É a história de um personagem que vai embora para a Alemanha, desaparece para a família, e, dez anos depois, o irmão mais novo dele vai procurá-lo na Alemanha sem saber se ele está vivo ou morto. É uma história desses dois irmãos, que se passa entre dois países, e é uma coprodução entre Brasil e Alemanha.

UOL - Você já mora em Berlim há dois anos, mas seus filmes, até agora, se passavam no Brasil. “Praia do Futuro” tem uma parte que se passa na Alemanha. Você considera isso como uma evolução natural?
Aïnouz -
É um pouco o ovo e a galinha. Porque eu morei na Alemanha durante um ano, em Berlim, em 2004, e fiquei muito encantado. Na verdade, esse roteiro quem escreveu foi o Felipe Bragança e a gente começou a trabalhar nele muito em função do meu interesse por esses dois lugares. Eu queria muito fazer um filme em lugares que eu goste muito, pelos quais eu tenha um afeto muito grande. E aí, estar na Alemanha foi muito em função do filme. Ele começou a escrever, daí eu fui em 2009 um pouco para conhecer a cidade, para conhecer o contexto, apesar de já ter morado lá antes. Então, eu não sei se foi uma evolução, não. Foi uma vontade de fazer um filme em dois lugares que eu gosto muito, e um desses lugares era Berlim. Fortaleza era o outro. Nos três filmes que eu já tinha feito, eu nunca tinha filmado em Fortaleza, e tinha uma vontade muito grande de filmar lá. Foi muito por conta disso, não por vontade de fazer um filme internacional.

UOL - Você teve uma experiência em televisão com "Alice", série da HBO que foi ao ar em 2008. Como foi? Você pretende voltar a fazer trabalhos para a TV?
Aïnouz -
Tem aquele slogan da HBO, “It’s not TV, it’s HBO”, então, não é bem TV, tem um pouco cara de cinema. Foi muito bom. Eu não sou um cara que tem uma carreira de cinema em que eu fui assistente de direção, essas coisas, não sou um cara que foi formado no ofício do cinema. Então, o bacana de ter feito essa série é que, de alguma maneira, você consolida o seu ofício. Dirigir é um ofício, e como qualquer ofício, é importante ter horas de voo. Não é que eu fiquei filmando sete meses, mas como eu dividia a direção com o Sérgio [Machado], quando eu não estava filmando, eu estava preparando, desenvolvendo, supervisionando. Depois, a gente ficou um ano montando. Isso foi muito especial. Eu acho que eu saí da série muito mais seguro para estar num set, para dirigir atores. Também tinha uma vontade de fazer TV porque é a mídia mais influente no Brasil quando a gente fala de audiovisual, é o que as pessoas mais veem. Hoje em dia, não é que eu não faria de novo – eu faria, dependendo do que fosse a história –, mas eu estou indo por um caminho meio contrário. A TV é um caminho muito industrial e eu quero cada vez mais fazer coisas que sejam artesanais, que eu tenha controle, que eu possa fazer dentro de um âmbito mais pessoal. Eu acho que eu estou flertando mais com as artes visuais do que com a TV hoje em dia. Buscando um caminho que me dê mais prazer.