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"Somos como os irmãos Coen", diz Pedro Bial sobre codiretor de "Jorge Mautner"

Cena de "Jorge Mautner - O Filho do Holocausto", de Pedro Bial e Heitor D"Alincourt - Divulgação
Cena de "Jorge Mautner - O Filho do Holocausto", de Pedro Bial e Heitor D'Alincourt Imagem: Divulgação

Sérgio Alpendre

Do UOL, em Recife

30/04/2012 15h19

São dois os diretores de "Jorge Mautner - O Filho do Holocausto". Um é falador, expansivo, discorre sobre vários assuntos e parece ter prazer em dar entrevistas. Chama-se Pedro Bial e dispensa maiores apresentações. Outro é mais calado, discreto, o que se costuma chamar de low-profile, mas dotado de grande inteligência e apetite musical, sendo ele também músico. É Heitor D’Alincourt, encarregado de soltar as tiradas humorísticas durante a entrevista, concedida durante o Cine PE,  onde o filme foi exibido no último sábado (28/4).

Ao primeiro coube, sobretudo, a execução do projeto, a realização, ao segundo, toda a pesquisa musical. "Somos mais como os irmãos Coen", diz Bial. "Tá mais para os irmãos Marx", corrige D'Alincourt, com bom humor.

"Músico, dotado de um conhecimento musical e de um conhecimento enciclopédico sobre a obra de Mautner que eu não tinha; e eu trazia uma bagagem de produção que ele não tinha. Foi um complemento. No set, as entrevistas ficavam mais comigo, mas ele também acompanhava. A gente se estimula muito. É amizade de torcedor, nos conhecemos nas arquibancadas", diz Bial sobre o amigo, ambos torcedores do Fluminense.

O documentário sobre Mautner, baseado em seu próprio livro de memórias, "O Filho do Holocausto", pertence ao lado bom da recente proliferação de documentários musicais brasileiros. Seu formato é batido, baseado em imagens de arquivo e entrevistas, mas Bial e D’Alincourt inserem um tempero diferente à mistura, resultando em um filme que, mesmo se apresentando inicialmente como mais do mesmo, consegue fazer com que terminemos a projeção com um sorriso no rosto, mesmo se, por acaso, não formos tão entusiastas do músico retratado.

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Vi 'Shine a Light' nos EUA e chorei o filme inteiro

Pedro Bial, sobre a influência de Scorsese no documentário

"Quisemos usar a música não como ilustração, mas como informação", diz Bial. Para ele, parte da força do filme é que ele é "muito rigoroso do ponto de vista jornalístico. Normalmente, a música em documentários é uma pausa que refresca. Não é o caso do nosso filme. Quando entra uma canção do Jorge Mautner, é uma informação tão ou mais importante que a das fontes primárias". Ajuda, nesse caso, o fato de que as letras de Mautner são de uma simplicidade envolvente, sendo também, ao mesmo tempo, profundas e quase filosóficas.

A sensação de ver um show
Os diretores resolveram filmar um show dentro de um estúdio, e fazer a câmera deslizar pelo cenário com fluência scorsesiana em movimentos circulares. A influência de Scorsese é assumida. Segundo Bial, "vi 'Shine a Light' nos EUA e chorei o filme inteiro. Esse filme e 'Stop Making Sense', que documenta uma turnê dos Talking Heads, revolucionaram a maneira de se filmar shows, com intenso uso de closes".

Perguntado sobre influências cinematográficas fora do âmbito musical, Bial admite que elas existem, já que ambos são cinéfilos, mas acabam se dando de maneira tão inconsciente, que ele seria incapaz de citar. "Como estética, foi um documentário que usou artifícios da ficção, dramatúrgicos", acrescenta. "Não foi simplesmente gravar entrevistas, criamos cenários que traziam informações."

De fato, a ideia do show conferiu a "Jorge Mautner - O Filho do Holocausto", o tempero que o diferencia das demais cinebiografias musicais. Permite também que não se trabalhe numa linha tão presa à cronologia. Segundo Bial, "o filme segue uma linha lógica, mais do que cronológica, ainda que o filme tenha uma leve cronologia; ele vai de 1974 para 1982, depois volta para 1975, e assim por diante. Termina com aquela loucura de 'Guzzy Muzzy', no auge da ditadura militar, no Fantástico, da Rede Globo. É hilário". Bial refere-se ao clipe da citada música que encerra o filme, e mostra Mautner com roupas e dança andróginas, como um Ney Matogrosso ainda mais ousado.

"Foram quatro dias de filmagens de shows sem plateia, que serviram para colocar o esqueleto em pé. A carne, a pele, o sangue, vieram com o arquivo", afirma Bial, relembrando sua formação de poeta. "Uma vez que resolvemos esses quatro dias, o processo de pesquisa correu bem em paralelo", completa.

O trabalho de pesquisa foi facilitado pelo próprio Mautner, por meio de seu livro de memórias e de suas participações intensas no projeto.

Sobre o esmiuçamento propositalmente incompleto de detalhes da vida do músico, Bial comenta: "é um filme cheio de pudor. Como o biografado está vivo, não gostaria de fazer com ele o que não gostaria que fizessem comigo". Apesar disso, o filme incorpora uma autocrítica do personagem que o enriquece de matizes, sobretudo quando vemos o encontro com a filha, Amora, e a irresponsabilidade de colocar um nome, "feminino de amor", que acarretou problemas para a infância dela.

Pedro Bial comenta esse momento com a filha: "Não sabíamos o que iria acontecer quando colocássemos a Amora frente a frente com o Jorge, e ela falasse abertamente sobre algumas questões de sua infância [nudez constante de pai e mãe, nome sui generis, etc.]. Ela foi muito importante em nossa pesquisa, contou muita coisa. Foram várias conversas profundas, da gente sair bêbados. Mas na hora da gravação, não sabíamos o que ia acontecer."

O que acontece é que Mautner assume que errou, que foi irresponsável, e olha para a filha com tanta ternura, com um pedido de desculpas escondido no olhar, que não temos como ficarmos imunes à imensa carga dramática dessas imagens.

Mautner nesse momento se revela humano, com todas as incertezas e incoerências da espécie. Conquista definitivamente o público, que depois, ao vê-lo chorar enquanto Gilberto Gil canta "Maracatu Atômico", se emociona com ele.