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"Interpretar em outra língua é muito delicado", diz Ricardo Darín sobre trabalhar em Hollywood

Ricardo Darín e Martina Gusmán prestam primeiros socorros em cena de "Abutres" - Divulgação
Ricardo Darín e Martina Gusmán prestam primeiros socorros em cena de "Abutres" Imagem: Divulgação

ALESSANDRO GIANNINI

Editor de UOL Cinema

03/12/2010 21h09

Mal comparando, Ricardo Darín está para a Argentina no cinema assim como Tony Ramos está para o Brasil na televisão. Um galã longevo que invariavelmente tem como coadjuvante uma jovem e bela estrela em ascenção. Sua carreira, que foi projetada internacionalmente com "Nova Rainhas" (2001), está repleta de exemplos.

Mas tomemos como exemplo "Abutres", que estreou nesta sexta (3): Darín faz o papel de um advogado de porta de hospital que se envolve com uma paramédica em um contexto viciado por fraudes, gangsterismo, abuso no trabalho, drogas ilegais e outras coisas não muito distantes de realidades fraturadas por abismos sociais. Martina Gusman, que contracena com o ator, é a jovem atriz da vez que acaba sendo facilmente engolida na comparação.

ASSISTA AO TRAILER DE "ABUTRES"


“Abutres” estreou na Argentina antes da première no Festival de Cannes, em maio passado, e atraiu cerca de 700 mil espectadores às salas do país. Na mostra paralela Um Certo Olhar, o filme foi exibido ao lado de uma seleção mais experimental e não teve a repercussão esperada. Darín, que esteve no Brasil para a abertura da 5ª Mostra Cinema e Direitos Humanos da América do Sul, falou com exclusividade ao UOL Cinema sobre o filme, sua relação com o diretor Pablo Trapero, sobre o desejo de dirigir, os projetos com Walter Salles e a dificuldade de interpretar em outra língua.

UOL Cinema - Como começou a relação com Pablo Trapero?

Ricardo Darín - A relação com Pablo Trapero começou quando eu estava filmando "O Segredo de Seus Olhos" com [Juan José] Campanella. Estávamos em uma locação que ficava muito perto do escritório de Trapero. Então, um dia, ele apareceu, apresentou-se e disse que tinha uma história na cabeça que queria contar. Trocamos telefones, combinamos um encontro e ele me falou o que era um resumo do que seria "Abutres". Fiquei encantado com a possibilidade de contar uma história de amor entre duas pessoas que se desconhecem, sentem muita atração um pelo outro e, ao mesmo tempo, estão em um ambiente hostil. Gostei do fato de que não tivesse nada de romântico. De fato, a relação entre eles dois não tem nada de romântica. É muito direta e vital. Por diferentes motivos, eles se necessitam muito, mas não se detém em toda a parte da cerimônia e do ritual romântico, é tudo muito direto.

UOL Cinema - Como se relacionou com Trapero durante o trabalho?

Darín - Foi muito bem, por que ele é um homem que se deixa embriagar por aquilo que ele quer contar. Digamos que não conta suas histórias de um pedestal. Pisa no mesmo terreno que os atores. Gostei muito disso. É de trabalhar muito, não se dá conta de quantas horas faz que está rodando. Temos que dizer para ele quando parar.
 
UOL Cinema - Ele é um diretor colaborativo? Aceita sugestões?
 
Darín - Ele me convidou a fazer parte do grupo de roteiristas que reescreveu o tratamento final de "Abutres". E um mês e meio antes de filmar fizemos um trabalho de escritório muito árduo. Ele e eu todo o tempo, às vezes com a participação de Martina. Também houve participações dos seus co-roteiristas. Mas eu e ele ficamos fechados no escritório dele todo o tempo analisando cena por cena, diálogo por diálogo.
 
UOL Cinema - Agora, com relação ao método de trabalho, bate com o seu?
 

  • Ana Carolina Fernandes/Folhapress (29/07/2007)

    Ricardo Darín posa para foto ao participar de evento no Rio, em imagem de 2007

  • Divulgação

    Ricardo Darín protagoniza "O Segredo dos seus Olhos", de Juan José Campanella

Darín - Trapero é mais experimental. A sensação que eu tenho é que ele tem clareza do que quer. Sabe onde começa e onde termina. O que talvez não saiba é o que vai acontecer no meio (risos). Então, com certeza ele é caótico, mas é um caos criativo. Por exemplo, às vezes ele me perguntava o que eu achava sobre tal coisa, e eu falava que não trazia nada de novo para o filme, que era bobagem manter. Ou seja, é alguém que te incentiva a buscar, investigar e tirar fora. Nesse sentido, conserva ainda o aspecto amador do cinema. Algo que os cinéfilos festejam, por que está afastado da industrialização do cinema, apesar de saber exatamente o que está fazendo. Ele gosta de brincar com esse limite, essa fronteira entre o cinema clássico e o experimental. Gosta de entrar e sair desse jogo. Creio que nesse filme encontrou coisas muito valiosas ao caminhar por essa linha. O filme tem muitos planos-sequência...
 
UOL Cinema - Lembra muito os trabalhos dos irmãos Dardenne.
 
Darín - Exatamente. Prioriza texturas, detalhes e planos anticonvencionais. Ele é como uma criança fazendo cinema. Um dia, fomos filmar em um cemitério e começou a chover torrencialmente. Estávamos na zona de San Martin, na periferia de Buenos Aires. O cemitério fica localizado em um lugar que é quase como um poço. E choveu tanto, tanto, que o lugar inundou com um metro e meio de água. E ele queria filmar aquilo ali! Estava tudo inundado, com as lápides flutuando e ele estava louco, possuído, queria filmar aquilo de qualquer jeito. Os técnicos falavam: 'E os cabos, e a luz?'. E ele: 'Não importa'. É um resistente e não quer passar para a outra etapa. Quer que os seus filmes tenham essa textura e não vai se entregar tão facilmente. Acontece que "Abutres" é um filme que me surpreendeu pela repercussão, por que nunca pensamos em fazer um filme de denúncia social, nem nada. Só queríamos contar uma história de amor entre duas pessoas num contexto diferente. Aprendi muito. Ele me estimula muito a filmar, a encarar a direção.
 
UOL Cinema - Você pensa nisso?
 
Darín - Cada vez mais.
 
UOL Cinema - Mas tem alguma coisa em vista?
 
Darín - Algumas coisas secretas. Mas ainda não tenho a unidade condutora. Não sei onde começa e onde termina. Só tenho cenas esparsas. Falta muito. Mas aprendi muito e quero experimentar.

UOL Cinema - Como você seleciona os projetos que vai fazer.

Darín - Não tenho método formal. O que acontece é que leio muito, sou um leitor quase doente. E leio teatro e cinema. E nesse trânsito leituras adquiri experiência. Na página 25 sei se o tema me mobiliza ou não me mobiliza. Em caso positivo, não paro até o final. Os atores, geralmente, quando nos dão um projeto, inconscientemente vão direto ver o personagem que lhe estão indicando. Comigo não funciona assim: o que me interessa é a história. Se a história funciona e me atrai, tudo bem. Na terceira ou quarta leitura é que vou me concentrar no meu personagem. Depois, vou ver agenda e contratos. A leitura é a porta de entrada.

UOL Cinema - Você teve vários convites para filmar aqui e em Hollywood, mas porque não aconteceu?

Darín - Acredito que para filmar em outra língua é preciso pensar nela, para que não pareça algo artificial. Isso fica evidente quando acontece, temos vários exemplos para provar. Não ficaria à vontade de recitar algo sem saber o que estou falando. Tomo esse cuidado. Por isso, Hollywood me parece muito distante.

UOL Cinema - Mas há notícias de que você está estudando participar de um projeto de Walter Salles. E teve outras ofertas. É verdade?

Darín - Sim, recebi uma oferta dele e só aceitei porque é um personagem latino e o contexto também é o nosso. De qualquer maneira, ainda estamos conversando. Tive mais duas ofertas, mas estou levando os roteiros para estudá-los.