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Co-autor de "Elite da Tropa" fala sobre longa "Paraísos Artificiais"

Érika (Nathalia Dill, à esquerda) e Lara (Lívia de Bueno) no longa "Paraísos Artificiais" - Divulgação
Érika (Nathalia Dill, à esquerda) e Lara (Lívia de Bueno) no longa "Paraísos Artificiais" Imagem: Divulgação

Luiz Eduardo Soares*

Especial para o UOL

02/06/2012 14h00

Apanhar o espírito do tempo em um golpe de vista, levá-lo ao fogo das paixões humanas até arder, desdobrar a imagem-síntese em narrativa cinematográfica, fazê-la fluir como água, como a vida, e capturar, na trama, enquanto derrete no ar, o essencial, para devolvê-lo à terra e à sensibilidade de todos nós. Eis a receita. Porém, atenção: o que a obra devolve ao cotidiano não é um enigma decifrado, iluminando consciências, mas sua persistência inquietante, a resistência do que é complexo, dita nossos limites e circunscreve nossa finitude. A cinematografia criativa faz o mistério –a vertebração anímica de nosso tempo-- circular entre nós, infiltrar-se em nossos afetos e nos interpelar, desconstruindo certezas e desestabilizando identidades.

Esses talvez sejam os princípios da alquimia estética de Marcos Prado, codificados, aplicados e celebrados em seu belo, importante filme, Paraísos Artificiais. Não se trata propriamente de receita, porque receitas qualquer um replica, obtendo resultados parecidos, de qualidade comparável. No caso da arte, a história que se repete com a obediência a regras é menos que farsa: embuste e impostura. Marcos já era um dos melhores fotógrafos brasileiros antes de se tornar documentarista premiado.

Em "Paraísos", um filme ficcional, Prado não abandonou nenhum dos ofícios anteriores, o que lhe permite exercitar algumas virtudes raras, contra a corrente: a paciência quase oriental, meio Zen, para explorar a imobilidade e para alongar sem ansiedade os planos-sequência, que respiram profundamente.

A paciência contemplativa doma a edição, submetendo as conexões a um ritmo que é mais o pulso dos afetos e da beleza pictórica do que a sinapse veloz de um enredo vertiginoso. Nesse ambiente que parece feito para ver e sentir, os poros abrem-se, tornando os espectadores mais permeáveis a viagens que a razão desconhece e a fluxos de tempo inusuais. Por outro lado, a aceleração, quando irrompe, rasga a pele de corpos e paisagens, e nossos corações disparam: o enredo e a sensualidade visual nos mergulham na unidade encantatória do sensorial com o sentido.

A exaltação dos sentidos nos remete às substâncias psico-ativas, que alteram a consciência. Elas ocupam o centro da narrativa. Marcos Prado fez um filme para evocar a experiência da alteração da consciência sem cair na armadilha óbvia, sem cometer o erro de contar uma história sem pé nem cabeça para mimetizar a alucinação.

O filme nos aproxima do universo onírico e sensual das drogas ilícitas mantendo-nos alerta, mantendo-se consciente e crítico. Não julga, recusa generalizações, revela a pluralidade de vivências suscitadas pelo uso, porque as pessoas (os personagens) são diferentes, os contextos variam e as drogas são muito distintas. Tampouco se rende a apologias. Sublinha riscos, traz à tona a morte e a destrutividade do abuso, ainda que fique evidente para quem assista o filme sem preconceitos que a solução policial e criminalizante não faça qualquer sentido.

Entre o personagem masculino central e o traficante — encarnação do mercador indiferente a leis e limites— interpõem-se gradações, mediações, elos mais frágeis numa cadeia contínua de ligações, cumplicidades, parcerias e afetividade: o irmão mais novo e o velho amigo (depois hostilizado), graças aos quais o reencontro amoroso se viabiliza. Não há um abismo entre dois territórios, opondo o bem e o mal, o paraíso e o inferno, o mocinho iludido e o monstro aproveitador, o ingênuo viciado e o criminoso. As situações e redes, as passagens são muito mais nuançadas e complexas.

Por fim, retomo a abertura dessas reflexões: o espírito do tempo esteticamente capturado. Por que? Chegamos, então, à música eletrônica e aos rituais da juventude, em que se conjugam, na coreografia de corpos inebriados, entorpecimento e erotismo.

"Paraísos Artificiais" nos conduz ao coração do mundo cultural da juventude (pelo menos de certa juventude radicalmente questionadora), frequentemente ignorado ou observado de longe, de fora, com as lentes do preconceito. Esse coração se revela no momento extático das raves, das festas ao ar livre, noite adentro, ao embalo sinuoso e excitante da música.

Não me refiro a qualquer manifestação sonora, mas àquela que cancela as convenções melódicas e harmônicas, para jogar com timbres, volumes e intensidades, explorando mil e uma vezes as minúcias, sucessões e séries, os gradientes e as nuances, continuidades e rupturas, as ourivesarias minimalistas e a bravura dos rompantes maximalistas, as rupturas rítmicas assistemáticas e as pausas graves. Não seria esse o mapa da mina? Os rituais queimando o desejo, abrindo bocas e sedes, reinventando a linguagem e a comunicação humana, gestando corpos coletivos, quase organismos erótica e ritmicamente fundidos na coreografia espontânea.

Tudo isso soa como a síntese de experiências individuais e coletivas extraordinariamente importantes e reveladoras. Não se anuncia na rave o fim da história da racionalidade ocidental, nem o fim do mundo civilizado, nem mesmo o reino da superficialidade, do individualismo, da ligeireza leviana, nem o bloqueio da verbalidade. Mas, quem sabe?, a recusa a polaridades hipócritas, a antagonismos artificiais, as categorias classificatórias estigmatizantes e hierarquizantes, e às gramáticas sociais e culturais que nos trouxeram até os desastres das guerras contemporâneas, dos genocídios, do racismo, da homofobia, das discriminações e da destruição do meio ambiente.

O universo retratado no filme e nas celebrações orgiásticas de um primitivo/pós-moderno é o espaço de conexões, metonímias, graduações, em que hetero e homo não são mais armários e gavetas a guardar identidades, em que a liberdade pode ser combinada com o convívio pacífico. De novo, em outro tom, a velha utopia anárquica rousseauísta? Talvez, mas sem ingenuidade e com alta tecnologia.

Uma gota a mais mata uma protagonista. O ar de menos mata o pai. Os mergulhos dos irmãos lavam a alma, invertendo a tragédia paterna. O encontro fortuito põe um filho no mundo e gera um elo entre dois personagens que resistirá ao tempo (suspenso na prisão) e ao espaço transcontinental. Passos delicados, etapas no contínuo articulado por sutis diferenças. Não há aí uma visão de mundo, que agora se quer audível e sensorial? Mais perto do corpo e do desejo, do coração selvagem, e, por isso mesmo, convivendo mais de perto com a morte e a finitude, e, assim, mais avessa à onipotência e aos dogmatismos autoritários? Um som do mundo?

Tudo isso, num cinema perto de você.

TRAILER DE "PARAÍSOS ARTIFICIAIS"

(*Soares é antropólogo, professor da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), ex-secretário de Segurança Pública no Rio de Janeiro e co-autor dos livros "Elite da Tropa", "Elite da Tropa 2" e do novo "Tudo ou Nada". 58 anos)