Ney Matogrosso diz que sentiu falta de ser mais exposto no filme "Olho Nu"
"Tinha desejo sexual pela plateia, queria transar com aquela gente toda". A declaração apimentada é uma entre várias outras presentes em "Olho Nu", documentário que desnuda o artista multifacetário Ney Matogrosso, um dos ícones mais irreverentes da música brasileira. O filme de Joel Pizzini, coprodução do Canal Brasil e Paloma Filmes, foi a principal atração do 10º Amazonas Film Festival, em Manaus.
O ator e cantor de 72 anos acompanhou a exibição no evento, recebeu aplausos em cena aberta e foi ovacionado ao final da sessão. "É uma fatia da minha história e do meu pensamento", definiu Ney Matogrosso ao UOL. O longa chegará aos cinemas no início de 2014 e vai virar uma série que deve ir ao ar, também, no ano próximo ano, pelo Canal Brasil.
"Olho Nu" é uma evocação poética ao universo e da arte de Ney: são fragmentos selecionados em 300 horas de material em formatos diversos --16 mm, Super 8, Betamax--, guardados pelo artista, que gravava tudo o que fazia para a televisão. Do acervo pessoal surgiram registros raros, entre eles Ney se maquiando antes de ir ao palco com o Secos e Molhados na década de 1970, e uma entrevista concedida ao ator, comediante e cantor Grande Otelo.
40 anos de estrada
Ney comemora 40 anos de estrada e o trabalho mais recente, o show "Atento aos Sinais", chega em CD ao mercado em meados de novembro. E o cantor ainda quer renovação. "Sou outra pessoa. Não tenho mais ímpeto de transformar as coisas, mas ainda tenho vontade de transgredir. O mundo está cada vez mais 'careta', impossível eu me adequar a isso".
Outras 200 horas foram produzidas especialmente para o longa, com gravações realizadas no Rio de Janeiro, parte delas no sítio do artista em Saquarema, outra em sua residência no Leblon, e em Bela Vista, no Mato Grosso do Sul, onde nasceu em 1941. O filme extrapola seu personagem principal, que se entrelaça a períodos marcantes da história politica e cultural brasileira, como a bossa nova, o tropicalismo, a luta contra a censura e o movimento popular Diretas Já, que teve expressiva participação da classe artística entre 1983 e 1984.
A ideia de digitalizar o acervo, segundo Ney, foi do amigo e parceiro de longa data Paulo Mendonça, diretor do Canal Brasil e autor de canções do Secos e Molhados, como "Sangue Latino", "Medo Mulato" e "O Doce e o Amargo". Da ideia inicial até o filme pronto, foram cinco anos de trabalho. "Quando começamos a digitalizar esse material, ainda antes de ter a ideia de fazer o filme, me deparei com a vida de Ney e sua incrível coerência. É como se ele tivesse dado sempre uma única entrevista", observou Paulo Mendonça.
Em tempos de acaloradas discussões sobre biografias não autorizadas, Ney ressaltou que não vetou nada no filme e se declara a favor de que as biografias sejam liberadas. Entretanto, defendeu que, quando visar lucro, o biografado deve ser remunerado. E reforçou ainda que direitos precisam ser garantidos. "Se eu me sentir ofendido, que a Justiça seja célere".
Para Ney, tanto a mídia quanto o público pegaram pesado com os artistas do grupo Procure Saber (entre eles Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque), contrário às biografias não autorizadas, e que acabam de sofrer uma baixa de peso: Roberto Carlos, um dos pilares da discussão, optou por abandonar a aliança de artistas que pleiteavam a permanência da legislação atual, que ampara a autorização prévia.
"Na internet todo mundo se acha com direito de julgar, então caíram de pau, matando mesmo. Mas não é uma democracia, c******? Todo mundo tem que ter direito à sua opinião", enfatizou.
Trailer de "Olho Nu"
LSD, Cazuza e Santo Daime
Em "Olho Nu", Ney garantiu que não teve restrições e disse que até sentiu falta de ter sido mais exposto no filme. Seu próprio relato das experiências com drogas foi uma das ausências sentidas pelo artista. "Acho que o Joel quis limpar a minha barra, mas não há necessidade disso. Nunca escondi, sempre transitei com muita liberdade pela vida", disse. A droga em questão é o LSD, e o documentário esconde a afirmação dele de que foi uma experiência positiva. "Não tomava isso para ficar doido e dançar em boate. Eu ia para Búzios, vestia roupa branca, é outra situação. Era uma busca. Hoje em dia não é isso".
O trecho sobre o alucinógeno aparece no filme com três vozes sobrepostas, o que dificulta o entendimento. Segundo o diretor, foi um recurso sonoro utilizado com o objetivo de contextualizar o tema com pegada psicodélica. De ato, "Olho Nu" não se restringe ao formato de cinebiografia. É um filme-ensaio, um autorretrato em que o artista visita a si mesmo, suas memórias, história, amores, ideias, desejos, delírios, sonhos e contradições. "Esse não é um filme 'sobre', mas 'com', ou 'através' de Ney Matogrosso", definiu o diretor Joel Pizzini.
Há outros temas evitados em cena. As experiências do artista com a bebida indígena amazônica ayahuasca, na década de 1980, não aparece em nenhuma parte do documentário. No Brasil, o chá psicodélico é usado em rituais religiosos sincréticos, como o Santo Daime. Embora ainda classificada como alucinógeno, para Ney Matogrosso não se trata de uma droga. "O Daime me fez ver meu real tamanho, e entender que não sou mais importante do que um grão de areia ou uma flor. E isso não foi ruim, me ensinou a amar", disse.
O relacionamento com Cazuza também é relegado a apenas duas cenas na história. "Antes dele [Cazuza], a única coisa que oferecia a qualquer pessoa era meu corpo. Meus sentimentos eu não liberava, por traumas de pai e mãe", contou. A partir do cantor, Ney viu que era possível oferecer algo a mais. "Foi [ele] quem abriu essa porta. Havia um amor entre a gente que perdurou até a morte dele".
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