Diretor conta como tentou apagar o Capitão Nascimento em "Praia do Futuro"
"Praia do Futuro", filme de Karim Aïnouz ("Madame Satã", "O Céu de Suely") que estreou nesta quinta (15), vem ganhando manchetes em veículos de todo o país desde o Festival de Berlim, em fevereiro, mas o diretor continua a se surpreender com a popularidade de seu protagonista, o ator Wagner Moura, e com a visibilidade que isso dá ao filme.
"Eu sabia que ali ia ter um borogodó, o negócio dele ter feito todos esse outros personagens, porque não é só o Capitão Nascimento. Eu imaginava, mas eu não desconfiava do tanto que ia ser", conta Karim ao UOL, por telefone. "Foi muito engraçado, eu estava com ele no aeroporto, indo para Fortaleza fazer a pré-estreia semana passada, e foi incrível o tanto de gente em volta dele. Eu não tinha muito essa noção do tamanho. Mas eu acho que eu tentei um pouco me proteger disso, tanto que sempre tivemos muito cuidado quando filmamos em Fortaleza disso não ser uma filmagem pública, de ser feito com certa discrição".
Ainda assim, a noção de que Wagner tinha personagens muito marcados no imaginário do público foi uma preocupação para Karim. O cineasta, que já na época de "O Abismo Prateado" (2013) se colocou a questão de como apagar a persona de Alessandra Negrini para ver somente o personagem, tinha em "Praia do Futuro" um desafio ainda maior, de "apagar" o Capitão Nascimento.
"É muito complicado e hoje eu ainda não sei se é possível esse apagamento completo. Mas eu tinha muita vontade", conta Karim, que conhece Wagner desde as filmagens de "Abril Despedaçado" (2001), do qual foi roteirista. "Eu conheci o Wagner muito antes dele virar o tal do Capitão Nascimento. Agora no lançamento do filme, é muito louco, muito impressionante como isso é potente, presente, como isso é muito difícil de apagar", reconhece.
Vulcão
Segundo Karim, a solução para dar vida a Donato --o salva-vidas de Fortaleza que, depois de perder pela primeira vez um afogado, parte para Berlim com o amigo da vítima (Clemens Schick) e resolve recomeçar sua vida por lá, deixando para trás seu irmão mais novo (Jesuíta Barbosa)—era então trabalhar Wagner de uma maneira diferente. "Ele é um cara que tem muita energia, tem uma alta voltagem, e às vezes essa alta-voltagem vaza muito na palavra, na maneira como ele fala, como ele se expressa. E aqui eu queria muito trabalhar com essa energia, mas conter e deixar isso no corpo dele, mais do que na palavra. Foi um pouco uma estratégia que usei", diz o diretor, apontando que Donato quase não fala. "Eu me lembro dele chegando no set do 'Abril'. Era uma força, um vulcão. Como é que eu consigo manter esse vulcão em ebulição sem nunca saber se ele vai explodir? É um pouco essa a maneira como eu tentei olhar e trabalhar com o Wagner".
Mas esse foi um risco calculado. "Eu quis adentrar nesse código. Como é trabalhar com um cara que é tão famoso quanto ele, que foi visto num filme por onze milhões de pessoas? E como é que eu consigo me apropriar? É claro que foi bom. Eu fico olhando para a repercussão que o filme está tendo, e é impressionante a visibilidade que um ator que tem essa popularidade dá ao filme".
A presença de Wagner ajudou inclusive a levar "Praia de Futuro" a um número muito maior de salas de cinema. Enquanto "O Abismo Prateado" estreou em cinco salas em 2013 e "Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo" teve sua abertura em nove salas em 2010, "Praia" bateu um recorde para a carreira de Karim: estreou em cem salas em todo o país.
"Eu fico me perguntando, se não fosse o Wagner, se fosse um cara que nunca fez nada, eu acho que o filme teria tido a mesma carreira internacional, acho que isso não teria mudado tanto. Mas aqui no Brasil, acho que o fato dele ser um cara conhecido ajuda o filme. Mas não sei quanto. A gente não tem Globo Filmes, não tem uma série de coisas", relativiza o diretor.
Filme gay?
Além do impulso comercial, a popularidade de Wagner também colocou em foco outra questão do filme: a homossexualidade do personagem, que foi omitida durante a campanha de divulgação antes da exibição do longa em Berlim.
"Foi de propósito", diz Karim. "Sabe por quê? Porque eu queria que o filme fosse descoberto, eu não queria que o filme fosse sequestrado por um tema. Eu ficava muito me lembrando do que aconteceu com o 'Azul É a Cor mais Quente', ele não foi sequestrado para esse lugar", afirma.
Para ele, foi importante estrear "Praia do Futuro" no Festival de Berlim para ganhar uma chancela de qualidade artística que tornasse o filme mais do que "um filme gay". "Acho que era muito importante chegar para lançar o filme no Brasil com essa percepção. Isso era importante para fortalecer o filme, para tornar o debate mais complexo em torno da questão que nem é a questão central do filme, mas que é importantíssima, que é a questão dele ser gay".
E de fato, no longa, a sexualidade de Donato não é enfatizada. Ela aparece como parte da experiência do personagem, um elemento a mais para o sentimento de deslocamento que ele tem em Fortaleza.
"Claro que não dá pra gente ficar aqui dizendo que seria a mesma coisa se ele fosse hetero. Não seria o mesmo filme, o percurso do personagem não seria o mesmo. Então, era importante sim que ele fosse homossexual, mas era importante também que não fosse só isso que fizesse ele desejar adentrar no mar e sair do outro lado do mundo. Porque a gente sempre achou que se fosse só isso, jamais justificaria , não estamos na Rússia. Era muito importante que essa não fosse a única motivação do personagem para começar a vida num outro lugar, para sumir, para desaparecer. Mas é óbvio que isso é um traço importante. E eu reforço: é um traço importante de um determinado tempo. Eu não sei se em 2014 a experiência do personagem faria tanto sentido quanto ela fez dez anos atrás", acredita Karim.
Gerações e classes
A questão geracional, para Karim, também era importante, já que o filme se passa em dois tempos, com distância de oito anos entre eles. "Donato teve que sumir, se esconder, e a geração do irmão não, o irmão chega lá e diz: 'meu, não precisava ter feito isso, tá tudo bem'".
Além disso, para ele o filme também leva a questão da homossexualidade para um âmbito de classes sociais. "Geralmente a homossexualidade está ligada a uma questão de classe. Aqui ele é um personagem classe C, é um cara assalariado, que é bombeiro. Era importante falar dessa questão dentro de outro âmbito de classe, porque parece que todo gay é rico, né?", argumenta o cineasta.
Seja qual for a discussão, o fato é que a popularidade de Wagner ampliou o debate para um público que é fã do ator por causa de "Tropa de Elite", e que talvez não se interessasse imediatamente por um filme de Karim.
"Acho que o filme está suscitando um debate super bacana. Fico super feliz que esse debate esteja em pauta, porque, como eu acabei de dizer, estamos em 2014. E quando eu fico dizendo dessa questão sequestrar o filme, eu só torço que essa polêmica seja produtiva. Mas acho que ela já está sendo, já está colocando questões políticas importantes. Eu tinha vontade sim de fazer um filme político nesse sentido. Eu acho que é importante, que tem aí um panorama que precisa ser discutido, porque se fala pouco, mas o Brasil é um dos países mais homofóbicos do mundo", conclui o cineasta.
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