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Scola só voltou ao cinema porque "Federico" foi projeto familiar, diz filha

Da esquerda para a direita, Ettore, Paola e Silvia Scola ao lado do diretor de fotografia Luciano Tovoli, no set de "Que Estranho Chamar-se Federico!" - Arquivo pessoal de Silvia Scola
Da esquerda para a direita, Ettore, Paola e Silvia Scola ao lado do diretor de fotografia Luciano Tovoli, no set de "Que Estranho Chamar-se Federico!" Imagem: Arquivo pessoal de Silvia Scola

Natalia Engler

Do UOL, em São Paulo

09/06/2014 07h15

Depois de ser recebido com entusiasmo no Festival de Veneza e de encerrar a Mostra de São Paulo em 2013, chegou neste fim de semana ao circuito comercial uma homenagem de um grande cineasta italiano a outro grande cineasta italiano: "Que Estranho Chamar-se Federico! Scola conta Fellini".

A proposta de homenagear o grande amigo Federico Fellini (1920-1993) nos 20 anos de sua morte fez com que Ettore Scola, 83, aceitasse deixar temporariamente a aposentadoria anunciada há mais de dez anos. No entanto, o filme só foi adiante por ter se tornado um projeto familiar, com roteiro assinado em conjunto com as duas filhas, Silvia e Paola, e participação dos netos e da mulher.

"Meu pai aceitou pela amizade e o carinho que o ligavam ao grande diretor, apesar de não filmar há dez anos e de ter declarado que queria se retirar à vida privada", conta Silvia Scola, que explica que a ideia partiu dos diretores do Bifest (Festival Internacional de Cinema de Bari) e do Instituto Luce, entidade de apoio ao cinema italiano.

"Falava-se na verdade de um breve documentário de 20 minutos, composto principalmente de material de arquivo. Quando meu pai chamou a minha irmã e a mim para escrevermos com ele esta breve homenagem, a onda de memórias e o percurso em comum entre ele e Federico assumiram o controle. E disso saiu este filme, parte documentário, parte narrativa, que mostra o grande Fellini através dos olhos de um colega e admirador seu", explica Silvia.

No filme, Scola ("O Jantar", "Um Dia Muito Especial") reconta a trajetória de Fellini ("A Doce Vida", "8½") desde 1939, quando começou a trabalhar no jornal satírico "Marc'Aurelio". O longa mistura reconstruções ficcionais (filmadas no Estúdio 5 da Cinecittà, local preferido de Fellini) e material de arquivo, editado engenhosamente, de forma a se integrar com a encenação. Um belo exemplo disso são os passeios noturnos de carro por Roma, em que Fellini e Scola aparecem de costas, e ouvimos a voz verdadeira dos cineastas.

Em entrevista por e-mail ao UOL, Silvia relembra a amizade entre os dois cineastas, conta que o projeto acabou se tornando uma empreitada para toda a família, e como isso acabou animando Scola nesse "parênteses" de sua aposentadora. Ela também revela que está preparando, junto com a irmã, um documentário sobre a carreira do pai.

UOL - Como foi para Scola deixar sua "aposentadoria" para revistar esta amizade que parece ter sido muito importante para sua carreira no cinema?
Silvia Scola - Sair da "aposentadoria" anunciada dez anos antes foi difícil e cansativo para ele, mas o fato de fazer um filme "familiar" --com as filhas, os netos (todos, e cinco também no filme, como atores) e sua mulher (nossa mãe, que interpreta a mãe de Mastroianni)-- animou-o muito e permitiu que ele trabalhasse com a memória de forma mais leve e espontânea.

Você já trabalhou muitas vezes com seu pai. Foi diferente desta vez, por ser um projeto tão emocional?
Escrevi sete filmes com meu pai antes de "Federico", e este trabalho foi diferente seja pela natureza autobiográfica –na qual meu pai nunca tinha se arriscado e, pelo contrário, à qual sempre tentou deixar em segundo plano–, seja pelo tempo à disposição, que foi realmente pouco: menos de oito meses para o roteiro, filmagens, montagem, efeitos, pós-produção... Uma corrida contra o tempo da qual participamos todos nós (atores, colaboradores e operários), procurando dar o nosso melhor.

"Que Estranho Chamar-se Federico!" parece mais uma história afetiva da relação entre Scola e Fellini do que um filme mais preso à "verdade" histórica. Foi essa a intenção?
Obviamente, sendo Scola quem contava sobre Fellini, decidiu-se fazer uma narração pessoal, privada, em que a verdade histórica estivesse inserida em um percurso mais humano do que profissional. Uma história que pudesse tocar a todos, não apenas os admiradores do trabalho, e que tivesse como pilar central a profunda amizade que ligou os dois cineastas por 50 anos. Por outro lado, a grandeza de Fellini fala por si, através de seus filmes. Então, o único caminho para não ser apenas "comemorativo" era este de mostrar as origens e narrar a jornada pessoal do grande mestre.

O filme muitas vezes parece saído mais do universo onírico de Fellini do que do de Scola. Como vocês chegaram a esta "atmosfera"? Era importante misturar os dois universos?
Fico feliz com esta observação, porque quer dizer que conseguimos alcançar nosso objetivo, mas acredito que o universo onírico de Fellini é apenas evocado e inserido em um filme no estilo particular de Scola: realista, irônico, desencantado, beirando o jornalismo, com poucas incursões na visionariedade felliniana. Por outro lado, meu pai, mesmo amando Fellini, nunca tentou imitá-lo ou copiá-lo, e era importante nos mantermos fiéis à natureza diversa, ainda que comum, dos dois.

Trailer legendado de "Que Estranho Chamar-se Federico!"

Entre Fellini e Scola havia sempre Marcello Mastroianni. Qual era o papel dele nesta amizade?
Mastroianni, como contamos no filme, foi outro ponto de encontro entre meu pai e Fellini, porque a amizade entre eles transcendeu a relação ator/diretor. Na vida, eram ambos ligados afetivamente a Marcello, e isso, para a nossa narrativa biográfica, era mais importante do que recontar seus percursos profissionais e os filmes que fizeram juntos.

Como foi a pesquisa para o filme? Vocês pesquisaram em biografias, documentos, diários, arquivos? Ou seguiram apenas as memórias de Scola?
Antes de começarmos a escrever, tivemos um imenso trabalho preliminar de pesquisa em arquivos. Fellini deixou quilômetros de entrevistas, e minha irmã e eu chamamos como reforço até nossos filhos Marco e Tommaso, para nos ajudarem na pesquisa do material de arquivo e depois selecionar com base nas memórias do nosso pai. Foi um esforço enorme, mas, no fim, ficamos satisfeitos com o trabalho realizado e com o resultado da mistura entre trechos narrativos de ficção, filmados no Estúdio 5 da Cinecittà, e materiais originais.

O filme traz diálogos montados a partir do áudio de entrevistas antigas. Estes momentos são alguns dos mais comoventes do filme. Como vocês chegaram a este formato e por que era importante incluí-los no filme?
Era importante que Fellini "vivesse" no filme ao lado de Scola, e que pudesse "falar" como se realmente estivesse ali com ele, vivo, como de fato está vivo na memória universal que o acompanha até hoje. Foram dias inteiros passados nos arquivos da RAI e da Luce e noites em claro a assistir, selecionar e adaptar os diálogos à história. 

Você acompanhou pessoalmente esta amizade? Quais são as lembranças que tem da relação entre dois dos mais importantes cineastas italianos? Essa amizade deixou alguma lição para você?
A amizade do meu pai com Fellini se deu muito do lado de fora da nossa família, de noite, no carro, em viagens ou nos sets de ambos. Federico jantava com frequência em nossa casa e, mesmo que não fosse tão assíduo quanto Marcello, sua presença foi constante ao longo dos anos, também como espectador e admirador. A lição deixada foi aquela do meu pai, que mesmo admirando muitíssimo o cinema de Fellini, nunca sentiu necessidade de imitá-lo, mas sim de reelaborá-lo a seu modo: as incursões no onírico e no metafísico existem no cinema do meu pai, mas sempre transfiguradas pela lente da ironia. Por exemplo: a "visão" de (Vittorio) Gassman em "Nós Que Nos Amávamos Tanto", que fala com a mulher que acabou de morrer, Giovanna Ralli, à qual diz "estou falando sozinho, como um louco".

Scola tem intenção de retornar à cadeira de diretor mais alguma vez? Há algum projeto para o futuro?
No momento, não, ele não tem outros projetos e não quer nem ouvir falar. O cansaço de fazer "Que Estranho Chamar-se Federico!" foi muito grande e, como ele diz, foi apenas um parênteses na sua aposentadoria. Mas minha irmã e eu estamos fazendo um documentário sobre ele –um retrato do cineasta, roteirista, humorista etc.--, que nos foi encomendado, para o qual ele se colocou totalmente à disposição, além das expectativas mais otimistas.