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Eastwood escorrega em 1º musical sobre banda de Frankie Valli nos anos 1960

Eduardo Graça

Do UOL, em Nova York (EUA)

25/06/2014 19h25Atualizada em 01/07/2014 13h10

"Não posso tirar os meus olhos de você", diz a letra do maior sucesso de Frankie Valli, “Can’t Take My Eyes Off You”, lançada em 1967 e tocada à exaustão nas vitrolas brasileiras da época. Quase meio século depois, o público, ao menos o norte-americano, mirou outros horizontes e deixou ao deus-dará a adaptação para o cinema de “Jersey Boys: Em Busca da Música”, musical de sucesso da Broadway, que conta a história dos Four Seasons, o grupo que lançou Valli ao estrelato.

O filme, que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (26) e tem orçamento estimado em US$ 40 milhões, foi recebido com frieza pela crítica norte-americana: amealhou apenas US$ 13 milhões de bilheteria doméstica e teve 71% de seu público no primeiro fim de semana formado por pessoas com mais de 50 anos, gerando questionamentos na imprensa dos Estados Unidos sobre a real relevância artística tanto do pop bubblegum dos anos 1960 quanto do diretor do filme, o octogenário e lenda viva de Hollywood, Clint Eastwood.  

Enquanto algumas publicações utilizam "Jersey Boys" para argumentar que Eastwood é um diretor superestimado, como fez o site especializado "The Daily Beast",  os críticos em geral não aprovaram o filme e, de uma forma educada, falam de certo cansaço no trabalho do cineasta.

Quando adquiriu, há quatro anos, os direitos para adaptar a história dos quatro rapazes de Nova Jersey, o produtor inglês Graham King (de “O Aviador”) se deparou com a mesma reação dos manda-chuvas dos grandes estúdios de Los Angeles: em um cenário cada vez mais dependente dos mercados internacionais, como bancar uma cinebiografia de um conjunto musical sem o mesmo apelo comercial fora dos Estados Unidos, de alguns de seus mais notórios contemporâneos, como os Beatles ou os Beach Boys?

Depois da saída de Jon Favreau da direção, do recrutamento de Eastwood --cujo projeto de reviver outro musical, o clássico "Nasce Uma Estrela", não ganhava prumo-- e da troca de estúdio da Sony pela Warner, "Jersey Boys" finalmente tomou corpo. Mas fica difícil não olhar para os números desastrosos do lançamento doméstico e deixar de questionar se o tal poder de atração do repertório do grupo que, entre 1962 e 1963, esteve no topo da parada musical por 13 semanas nos Estados Unidos, já não se dissipou, inclusive em sua terra natal.

Celebrados no The Rock & Roll Hall of Fame em 1990, o grupo --que foi incapaz, na segunda metade dos anos 1960, de se adaptar à evolução da era dos singles para a dos discos conceituais-- tem sua formação e separação apresentados no filme como pano de fundo para a exploração do universo da família de imigrantes ítalo-americanos na Costa Leste dos EUA. Valli é um dos produtores do filme, função que exerce também no musical, ainda em cartaz em Nova York.

Estranhamento na direção

Eastwood, curiosamente, aparece de lampejo em “Jersey Boys”. O que se vê, na tela minúscula de uma TV em um hotel onde os Four Seasons estão hospedados, é o caubói-galã de um velho faroeste. A cena ecoa a pergunta recorrente em boa parte das críticas ao filme: “Mas por que cargas d'água Eastwood foi dirigir este musical?”.

O estranhamento se dá menos pela proximidade do artista do universo da música --seu pai foi cantor e ele dirigiu o elogiado “Bird”, de 1988, uma ode tanto a Charlie Parker quanto aos anos dourados do jazz-- e mais pelo seu distanciamento do pré-rock cultuado pelos Four Seasons, fãs de Frank Sinatra e do R&B branco, detentores de uma pegada pop tão ingênua quanto visceral, exemplificada em hits como “Sherry” e “Big Girls Don’t Cry”. Estes ficam mais grudados na cabeça do espectador do que qualquer imagem do filme.

Até mesmo uma das decisões mais corajosas de Eastwood --a de recrutar, na contramão da maioria das versões cinematográficas de sucessos estabelecidos da Broadway, atores que já haviam encarnado seus papéis no teatro, em detrimento de estrelas da hora-- acaba se voltando contra o próprio diretor.

John Lloyd Young (Frankie Valli), Michael Lomenda (Nick Massi), Erich Bergen (Bob Gaudio) e Vincent Piazza (Tommy DeVito), este último o único a não ter participado de nenhuma das versões do espetáculo, são talentosos e cantam de verdade, mas acabam mostrando menos do que podem em um filme de 2h15 que, curiosamente, oferece cenas de palco a conta-gotas.

Retrato dos Four Seasons

A história dos Four Seasons gira em torno dos amigos de infância Valli, dono de uma voz angelical; DeVito, espécie de figura paterna um tanto enviesada; e Massi, o gente-boa com tiradas inusitadas, que se tornam uma banda de fato com a chegada do compositor Gaudio, extraído de uma realidade menos classe média-baixa do que a do trio ítalo-americano.

O drama se dá em torno da relação doentia do gregário DeVito com credores ligados ao crime organizado e sua obsessão pela farra e pelas mulheres, oposta ao investimento na busca pelo sucesso e pelo aprimoramento musical de Valli e Gaudio.

Nick Massi morreu em 2000, antes de o musical estrear, e DeVito, o arremedo de vilão em “Jersey Boys”, está afastado dos produtores há décadas. Não por acaso, Gaudio aparece no filme sem grandes falhas de caráter, e os pecados de Valli são os de ter tido um caso extraconjugal e se afastar da família por conta das longas turnês em grupo pelos Estados Unidos afora.

Durante o lançamento do filme, uma ex-fã de Valli voltou a ganhar páginas dos tabloides locais com a alegação --e um livro a tiracolo-- de ter sido abusada sexualmente pelo cantor, hoje com 80 anos. Valli contesta a acusação. “Jersey Boys” guarda uma de suas melhores surpresas para o filnal. O filme conta com a participação de Christopher Walken, na pele de Ângelo “Gyp” de Carlo, um dos capos da notória família Genovese, das mais poderosas da Cosa Nostra do lado de lá do rio Hudson.

Fã ardoroso de música romântica, foi ele o responsável pelas primeiras investigações das ligações de Frank Sinatra com a máfia. Na cena final, à la Bollywood, Clint Eastwood quase se redime da mão pesada que usou para dirigir sua primeira adaptação de musical da Broadway, ao oferecer um presente para o público: a alegria de observar Walken, aos 71 anos, juntar-se ao elenco principal para dar um show de sapateado.

Uma das poucas epifanias artísticas em um filme mais focado no relacionamento dos quatro protagonistas do que na singularíssima trajetória musical dos quatro rapazes de Nova Jersey.