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Incentivos públicos e Anima Mundi impulsionaram "boom" da animação nacional

Natalia Engler

Do UOL, em São Paulo

25/07/2014 07h00

A animação brasileira vive um momento peculiar em 2014. Até 2013, o país nunca havia competido no principal evento internacional do gênero, o Festival de Annecy, na França, uma espécie de Cannes da animação. Logo na primeira participação, “Uma História de Amor e Fúria”, de Luiz Bolognesi, levou o prêmio de melhor longa-metragem.

Em junho deste ano, a história se repetiu com “O Menino e o Mundo”, que foi premiado como melhor longa pelo público e pelo júri –sendo que a presença brasileira era ainda maior: Luiz Bolognesi estava no júri oficial e outras duas animações nacionais foram exibidas fora da competição.

Bolognesi, que antes de “Uma História de Amor e Fúria” era conhecido principalmente pelos roteiros dos filmes de sua mulher, Laís Bodanzky (“As Melhores Coisas do Mundo”, “Chega de Saudade”), acredita que a animação brasileira está “na moda”.

“Se ganha uma vez, parece uma exceção –um talento excepcional, um ponto fora da curva. Na hora em que ganha duas vezes seguidas, nós estamos na moda”, diz ele sobre a dupla vitória em Annecy. “Todo mundo enxerga a gente como um novo território de qualidade, como um novo lugar, e está todo mundo de olho, todo mundo querendo os filmes”.

Segundo a revista “Variety”, "O Menino e o Mundo" já foi vendido para mais de 20 territórios, incluindo Estados Unidos, França e Bélgica.

Alê Abreu, vencedor deste ano, conta que ouviu do diretor de Annecy que “O Menino e o Mundo” é um sopro de vitalidade. “Os filmes estavam saindo como se sempre fossem feitos pelas mesmas produtoras. Eu não vejo diferença entre um 'Shrek' e um filme do Carlos Saldanha, por exemplo. Ou 'Frozen' e 'Shrek'. São muito parecidos, têm a mesma estrutura, têm o mesmo tipo de design, de atuação dos personagens, de gags, de cor”, acredita.

Nas salas de cinema
O cenário é promissor não só na esfera do reconhecimento internacional. Se as previsões de 2014 se concretizarem, nove longas nacionais de animação terão sido lançados no circuito comercial entre 2010 e 2014, contra seis entre 2005 e 2009, e apenas um em toda a década de 1995 a 2004.

A Gullane, produtora de filmes como “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias” e “Amazônia”, é uma das empresas que está contribuindo para este aumento na produção de animações.

Bolognesi - AgNews - AgNews
O cineasta Luiz Bolognesi, diretor de "Uma História de Amor e Fúria"
Imagem: AgNews

“Se você olhar tanto do ponto de vista criativo quanto do de negócio, a animação no mundo e principalmente aqui no Brasil é muito promissora”, acredita Caio Gullane, um dos sócios da empresa.

“Os filmes infantis que realmente fazem bilheteria são as animações, com um lugar reservado entra ano e sai ano. E há uma oxigenação criativa muito grande, tanto dos estúdios americanos quanto da linha mais europeia, asiática e tal. A gente, observando isso por muito tempo, se interessou em entrar na animação”, conta. Ele produziu “Uma História de Anor e Fúria” e atualmente está envolvido no projeto de uma adaptação da “Arca de Noé”, de Vinicius de Moraes, com co-produção de Walter Salles e direção de Sérgio Machado (“Cidade Baixa”).

Mas como explicar este aparente boom na produção?

Trailer de "O Menino e o Mundo"

Leis de incentivo
Para Bolognesi, o crescimento da produção de animações tem a ver com as políticas cinematográficas que permitiram o crescimento do cinema nacional como um todo. “Primeiro, nós temos uma política cinematográfica muito consistente, que permite a produção de cinema autoral. Por outro, acho que a gente é muito criativo, é um dos nossos valores. Com muito pouco dinheiro, fazemos filmes que têm qualidade. Soma-se essas duas coisas e aí estamos em um momento muito interessante”.

Para o cineasta, ainda que existam críticas às políticas governamentais de incentivo, elas são essenciais para uma produção de qualidade. “Nós temos sim recurso do Estado, mas não existe quem enfrente Hollywood sem isso. E nós temos isso com um olhar que permite que o cinema autoral exista. Então, tem muito mais dinheiro para a animação e estamos conseguindo fazer essa animação de cinema e muita coisa para televisão, muito desenho animado para criança que está sendo vendido para o mundo todo”, afirma.

Alê Abreu, que começou a fazer seu primeiro curta aos 17 anos, em 1988,  também cita a importância das leis de incentivo para impulsionar as animações. “Eu fazia porque era apaixonado e porque queria fazer o meu desenho animado. Tudo que eu vi acontecer desse momento para cá foi só a animação brasileira crescer, não só em número, mas também em qualidade. E daí teve o surgimento das novas leis de incentivo, tudo que a gente viu acontecer, e acho que a animação pegou rabeira nisso aí”, explica.

A Ancine (Agência Nacional do Cinema), embora não tenha linhas específicas para animações, diz que tenta atender a todos os gêneros de cinema da mesma forma. Entre junho de 2012 e julho deste ano, 30 projetos de animações cinematográficas foram autorizados pela agência a captar recursos de cerca de R$ 100 milhões pelas leis de incentivo.

Este ano, a Ancine também ampliou de 18 para 30 meses o prazo de conclusão das animações selecionadas para receber recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA, programa de fomento direto, em que os projetos recebem recursos diretamente do Estado). Segundo a Ancine, a mudança veio para atender demandas de produtores, já que animações levam muito mais tempo para serem produzidas.

Trailer de "Uma História de Amor e Fúria"

Anima Mundi
Se as políticas governamentais ajudaram, Abreu vê também um outro fator, anterior a elas, como um dos principais impulsionadores da produção nacional: a criação do Anima Mundi, Festival Internacional de Animação do Brasil, em 1993.

“O que eu acho que ajudou muito e estimulou esse surgimento foi o Anima Mundi”, diz ele, que viu seu primeiro curta-metragem, “Sirius”, ser apresentado como animação nacional do ano na primeira edição do evento. “Acho que também foi uma grande vitrine, todo animador queria ter seu filme no Anima Mundi. E também é um lugar de encontro”, acredita.

Para Cesar Coelho, um dos criadores do Anima Mundi, o bom momento da animação nacional não ocorreu por acaso, e o festival “foi fundamental para revelar o potencial que o Brasil tem para a animação”.

“Isso é fruto de trabalho pensado e amadurecido ao longo de ao menos 20 anos, que é o tempo em que o Anima Mundi existe. O Anima Mundi foi criado com essa intenção mesmo, de promover a animação no Brasil”, conta.

Alê Abreu - Tiago Dias/UOL - Tiago Dias/UOL
Alê Abreu com os primeiros rascunhos de "O Menino e o Mundo"
Imagem: Tiago Dias/UOL

Coelho explica a estratégia do Anima Mundi para impulsionar a produção: “Começava com a criação de público e a valorização da arte no Brasil, depois a atração e incentivo a novos artistas. Depois, passamos por um período de aperfeiçoar o trabalho brasileiro fazendo intercâmbios com os melhores artistas internacionais, as melhores produtoras. Em seguida, veio um período que é o estágio final, de começar a discutir coletivamente como mudaríamos o patamar da produção, que era basicamente autoral ou publicitária há 10 anos atrás, para entrar numa era mais industrial de animação para séries, longas-metragens”.

Dentro dessas etapas, houve a criação da ABCA, Associação Brasileira de Cinema de Animação, que, segundo Coelho, serviu de plataforma para discutir com várias instâncias governamentais a importância de fazer linhas de financiamento e incentivos especiais para a animação.

“A gente foi ouvido nisso, isso aconteceu em vários níveis. E aí o resultado é esse. Fomos crescendo, começamos a ganhar espaço no mercado de séries primeiro –que é o maior mercado de animação, o que dá mais dinheiro, o que tem mais possibilidade de venda, mas é um mercado muito competitivo. E a gente entrou nesse mercado pela porta da frente, como autores, não como mão de obra, que é o que normalmente acontece”, conta.

Se nos primeiros anos do Anima Mundi o festival recebia de 7 a 15 filmes brasileiros por edição, entre longas e curtas, hoje, segundo Coelho, este número está em mais de 300.

Curiosamente, na edição deste ano do Anima Mundi –que ocorre de 25 de julho a 3 de agosto no Rio, e de 6 a 10 de agosto em São Paulo–, não há nenhum longa nacional na competição. “Escolhemos colocar em uma programação especial. Queríamos fazer uma homenagem, e na competição não dava, temos que ser imparciais”, diz Coelho, que, mesmo assim, ainda se diz surpreso com o atual patamar da produção de longas.

“O que surpreende é esse crescimento rápido na área de longas-metragens. Porque o longa é a parte mais sofisticada da produção de animação.
Acho que é talento acumulado, um talento que estava represado há muitos anos”, tenta explicar Coelho. “Temos uma facilidade muito grande com a animação, uma cultura que tem uma facilidade muito grande de absorver outras culturas, de dialogar, e isso permite criar produtos que fazem o maior sucesso internacional. Chegar num ponto de sofisticar até ganhar um prêmio no principal festival de animação do mundo era um passo previsível, mas foi muito mais rápido”.

Trailer de "Até que a Sbórnia nos Separe", de Otto Guerra

Bons vinhos
Luiz Bolognesi faz uma analogia com vinhos para tentar explicar esse salto de qualidade. Para ele, acontece na animação o contrário do que aconteceu com a bebida: enquanto Chile e Argentina investiam para produzir vinhos de qualidade equivalente aos europeus, o Brasil priorizou a quantidade, vendendo garrafões de cinco litros.

“Eu vejo Argentina e Espanha tentando fazer filme de US$ 40 milhões que são genéricos da Pixar, como o 'Um Time Show de Bola' ou o próprio 'Justin e a Espada da Coragem', para tentar o mercado. Mas nunca dá certo, porque é o genérico, a cópia. Investiram no galão de cinco litros”, compara.

“Nós passamos essa década com Otto Guerra, Alê Abreu, a própria equipe que fez o meu filme, tentando fazer uma coisa de qualidade, e deu certo. Nossos filmes não são blockbusters, não são poderosos em vender ingressos, mas podemos começar a pensar nisso para o futuro. Acredito que o principal nós temos, o selo de qualidade dado pelo maior doador de selos de qualidade, que é Annecy”, diz.

Esse atestado de qualidade já inclui inclusive rumores de uma possível indicação ao Oscar para “O Menino e O Mundo”, que teve os direitos de distribuição para os Estados Unidos adquiridos pela Gkdis. A empresa é responsável por várias produções estrangeiras indicadas ao Oscar de animação, como "Chico & Rita" (2010) e "Ernest e Célestine" (2012).

“O filme está falado para o Oscar sim. O Alê Abreu diz que não quer ficar criando essa ansiedade e eu acho que ele está certo, então não é ele que está falando, sou eu. O filme dele está falado, as pessoas estão dizendo que é a grande surpresa do ano, a grande animação autoral do ano –isso eu ouvi falado por japonês, sul-coreano, por estúdio americano”, conta Bolognesi sobre as impressões que teve durante o Festival de Annecy.

“Eu nem penso nisso. Estou tentando pensar no meu próximo filme, sequer penso no Oscar”, diz Abreu, que, no entanto confirma que seu filme está sendo cotado para uma indicação ao prêmio da Academia. “A Gkids tem três filmes importantes esse ano. Um ou dois dos três deve estar nessa lista do Oscar”, acredita.

Novos projetos
Ainda que as animações enfrentem dificuldades como falta de profissionais e de um sucesso de bilheteria, o reconhecimento internacional virou incentivo para continuar produzindo. Além do projeto da Gullane e de Walter Salles para adaptar “A Arca de Noé”, Luiz Bolognesi e Alê Abreu já estão começando a pensar em novos projetos.

“Eu tenho uma pasta de anotações, mas eu ainda não sei dizer, não posso dizer. É muito fetal. Ainda não vejo a carinha da criança”, diz Abreu.

Já Bolognesi está trabalhando em um projeto ao qual deu o nome de “Viajantes”, apesar de não saber se vai conseguir viabilizá-lo. Se acontecer, o longa seria um filme voltado para todos os públicos, sobre uma menina de São Paulo, de 12 anos, que “descobre uma maneira de mudar de famílias e viver várias vidas”. “Mas eu não faria outro filme como eu fiz o anterior, com US$ 2 milhões. Não dá”, diz o cineasta. Se o projeto sair do papel, o plano de Bolognesi é finalizá-lo até 2018.