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Regina Casé leva jargão "junto e misturado" ao cinema com "Made in China"

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

05/11/2014 11h22

Fazia 14 anos que Regina Casé não pisava em um set de filmagens. Com uma filmografia extensa nos anos 80, a atriz disse que se sentiu "uma jeca” ao entrar pela primeira vez no cenário de “Made in China”, comédia dirigida pelo seu marido, Estevão Ciavatta, e que marca seu retorno à tela grande. “Era maior que o cenário do Projac”, disse, em entrevista ao UOL.

A indústria do cinema pode até ter mudado, mas Casé continua popular. Sua dramaturgia, ela explica, é alimentada pela observação diária dos tipos brasileiros: aguerrido, desconhecido e batalhador. “Fico muito comovida com a existência dessas pessoas”, ela diz ao UOL, com a voz embargada. 

A vendedora Francis, sua personagem em "Made in China", que estreia nesta quinta-feira (6), trabalha em uma loja árabe na maior região de comércio popular do Rio de Janeiro, conhecida como Saara. Ela se torna protagonista ao investigar a chegada de imigrantes chineses ao centro comercial, com produtos baratos e de origem duvidosa. Como o atrito entre culturas e línguas diferentes dá munição para as piadas no filme, o estereótipo na comédia foi o assunto que dominou grande parte da entrevista coletiva realizada com a equipe do filme.  “Vocês acham que pegamos pesado com os chineses?”, chegou a questionar Casé na ocasião.

Trailer de "Made in China"

No filme, predominam o clima e o mote do programa “Esquenta!”, apresentado pela atriz na Globo. “Tudo junto e misturado” é o jargão de Casé na TV, no filme e na conversa com o UOL. Também é sua maneira de buscar a integração entre os povos e atenuar o preconceito contra os imigrantes chineses que atuam no Saara (no caso de “Made in China”), contra a cultura negra e periférica (no “Esquenta!”) e o  contra o voto dos nordestinos (na ressaca pós-eleitoral).

“Acho muito chato que o Brasil seja um lugar onde os velhinhos só possam ir a bailes da terceira idade, onde os gays só possam dançar em boates gays sem conviver jamais com os héteros”, ela ri. “O que querem agora é isso. Separar rico de pobre, branco de preto, é o pior que pode acontecer.”

A atriz ainda afirma que evita ler críticas sobre o seu programa de TV e descredencia quem a aponta como alguém que "ama a favela, mas não larga a mão da cobertura". “Eu nasci na zona sul de Copacabana, cresci e estudei em colégios ótimos, não tenho que balancear o quanto eu vou para a laje ou para a cobertura. Isso é maluquice”.

Em 2015, ela estará de volta ao cinema com "Que Horas Ela Chega?", de Anna Muylaert. O tom será um pouco mais dramático do que o de "Made in China", mas, ainda assim, a empregada nordestina do novo longa será a cara da Regina Casé. "Você olha para ela [a personagem] e diz: ‘nossa, mas é o jeito da Regina’. Eu tenho isso tudo. Nem só a cobertura, nem só a laje."


UOL - “Made in China” é o seu primeiro filme após 14 anos longe do cinema, quando você protagonizou “Eu, Tu, Eles”. Por que demorou tanto tempo para voltar?
Regina Casé - É meio inexplicável. Morro de vontade de fazer, mas, na televisão, além de apresentar, eu participo em todas as instâncias de criação. Acabo trabalhando muito. Se não fosse o Estevão [Ciavatta, marido dela e diretor do filme] aparecer com roteiro e a Anna [Muylaert, que dirige Regina no inédito “Que Horas Ela Volta?”] me chamar... Tirei dois meses de férias para isso, me esfalfei de gravar [o programa “Esquenta!”] antes, para ter frente. Tomara que com esses dois filmes eu pegue um embalinho e comece a arrumar minha vida para equilibrar as duas coisas.

Como foi sua volta a um set de filmagem depois de tantos filmes nos anos 80? Você disse na coletiva que se sentia uma “jeca” quando entrou no set de “Made in China”.
Senti. Eram ruas, passavam carros. Era maior que o cenário do Projac. A loja do filme é de verdade. Sai água da torneira, tem dinheiro no caixa. Fiquei impactada. Acho que o filme tem um acabamento de fotografia, de arte, tudo muito caprichado.

Você disse na coletiva: “sou do tempo que os filmes tinham mensagens”. Qual é a desse filme?
Eu acho bacana quando você acaba de ver o filme, e alguém pergunta: “qual é a do filme?”. Ele começa a falar da convivência dos árabes e dos judeus em um centro comercial como tantos outros, como em Nova York ou na Bahia, aí chegam os chineses, e sempre tem aquele estranhamento com quem chega por último. Um estranhamento que você geralmente rejeita, é agressivo. Porque aqui não tem Chinatown, como em todo lugar do mundo? Aqui é tudo junto e misturado. A Francis, minha personagem, se torna protagonista e acaba resolvendo a questão do filme, porque, afinal, ela era obcecada pelo fato de uma caixa com 140 lampadinhas custar R$ 1,99 e, se você for comprar só a tomada, já dá R$ 2. Eu falei para o Estevão: ‘mas aí não solucionou essa questão, por que é mais barato?’. E ele disse: ‘mas se a gente for explicar, aí vira um filme de terror ou de suspense’.

Sua personagem reage à chegada dos chineses no Saara. Faz piada, mas tem pena. Ela mesma diz: “tenho uma pena de estrangeiro”. A gente está vivendo um momento pós-eleição no qual até a própria migração está sendo criticada mais uma vez. Ainda temos muitos preconceitos, não?
Nós vamos viver muito essa história de novos imigrantes. O Brasil, assim como em outras questões, tem que inventar o seu jeito de lidar com isso, seu jeito de absorver.  O filme não foi pensado para isso. Mas, ao retratar aquilo, acompanhar a onda do lugar, a gente aprendeu um caminho. Acho que o Brasil pode ter um pensamento original, singular e novo sobre como lidar com outros povos. Vamos receber muitos africanos e já estamos recebendo muitos haitianos. Podemos inventar uma maneira melhor e mais legal [de lidar com a questão].

Como driblar esse preconceito?
Criar uma maneira de colaboração que seja boa para as duas partes e que não seja apenas rejeição. No geral, as pessoas entram em pânico.

O filme tem o clima de seu programa “Esquenta!”. Sua personagem repete duas vezes “é tudo junto e misturado”, que é o mote do programa. É a maneira que você enxerga para integrar os povos e atenuar o preconceito?
O Brasil tem vocação para ser uma vanguarda antigueto. Acho que o modelo americano não é melhor nem pior, mas fez grandes avanços políticos e avanços de direitos civis, a partir da segmentação. Eu não sinto que esse seja o nosso caminho. Acredito que temos que inventar e conquistar esses direitos, fazer esses avanços, sem perder nossas características. Por exemplo, acho muito chato que o Brasil seja um lugar onde os velhinhos só podem ir a bailes da terceira idade, onde os gays só vão dançar em boates gays e não vão conviver jamais com os héteros (risos). O que querem agora é isso. Separar rico de pobre, branco de preto. Acho que é o que de pior pode acontecer. A maior liberdade que eu almejo é como a música do “Esquenta!”. “Alô Regina, que é tão gente fina, que pode chegar a qualquer esquina”. Não que eu tenha a ilusão ingênua de que eu possa ir a qualquer lugar, mas o que eu almejo para mim, para meus filhos e para todos os brasileiros é que você possa estar na laje e na cobertura. E que todo o mundo que mora na laje possa estar na cobertura. E que todo o mundo que está na cobertura possa estar na laje. Ficar em apenas um lugar é uma prisão. Muitas vezes eu ouço: "Mas a Regina mora na zona sul do Rio, como ela diz que gosta de favela?". Acho uma ideia tão louca. É como se para não ser homofóbica eu precisasse ser gay. Ou para não ser antissemita eu precisasse ser judia. Acho isso uma loucura. Espero que o Brasil não vá para esse caminho (risos).

A atriz Regina Casé no set de "Que Horas Ela Volta?" - Aline Arruda/Divulgação - Aline Arruda/Divulgação
A atriz Regina Casé no set de "Que Horas Ela Volta?", com estreia prevista para 2015
Imagem: Aline Arruda/Divulgação
Você faz do “Esquenta!” um grande panelaço cultural, dando espaço para a cultura da periferia. Mas o que é considerado por alguns um dos programas mais originais da TV ainda assim recebe críticas, principalmente de blogueiros e alguns movimentos, por promover um espetáculo em que reforça "o estereótipo dos negros brasileiros”. Você acompanha essas críticas?
Eu nasci na zona sul de Copacabana, cresci e estudei em colégios ótimos, não tenho que balancear o quanto eu vou para a laje ou para a cobertura. Isso é maluquice (risos). Eu querer valorizar, iluminar, respeitar uma cultura que eu acho interessante e que está há anos latente na periferia... (pausa) É como o Mumuzinho, que não existia, e hoje ganha prêmios. Dá uma alegria enorme. Eu não posso fazer isso porque moro na zona sul? (risos). Eu nem levo em consideração. E eu vou te dizer: eu nem olho esses blogs, esses troços, porque a cada dia eles estão com mais ódio, intolerância. São muito violentos. A primeira vez que alguém me mostrou, eu fiquei apavorada. Se eu for me nortear por isso, vou perder muito tempo, força e energia de trabalho. Mas não tem jeito,  você vai na manicure, e ela fala: "tem um homem que disse isso e isso, e eu escrevi embaixo que não é nada disso. Que você vai em casa, que você frequenta a favela, que eu te adoro". De vez em quando tenho umas defensoras que ficam tristes, magoadas e tomam as dores. Mas eu não fico lendo [as críticas]. Pelo contrário, sempre peço: nem me mostre para não me desanimar.

Grande parte da graça do filme está em você e no seu jeito popular, já conhecido.
Isso é um estereótipo (gargalha). 

Voltamos a eles então...
Deixa eu te dizer: eu adoro aquele tipo de mulher [de sua personagem]. Pode ser uma vendedora, uma empregada doméstica, uma cantora do funk. Ela é mulher, é mãe, trabalha para caramba, mas ela vai para o samba, muda a trança do cabelo toda semana. Isso é muito inspirador. Eu passo no Saara e fico meia hora conversando com as meninas dentro de uma loja. Rindo, zoando, falando mal de homem. É a chance de colocar para fora muita coisa que eu observo. Mas vou me defender: se você assistir, daqui a alguns meses, ao filme da Anna Muylaert, verá eu faço uma empregada nordestina, a Val. Mais velha, mora no quartinho de empregada, veio direto do sertão, de toquinha e óculos. Você olha para ela e diz: ‘nossa, mas é o jeito da Regina’. A Regina tem isso tudo. Nem só cobertura, nem só a laje.

Mas é raro uma atriz traduzir tipos populares e ainda ser reconhecida pelo público.
Sabe o que é isso? Amor. Falando sério.

Pelo quê?
Pelas pessoas, fico muito comovida pela existência dessas pessoas. Posso até chorar agora... (embarga a voz). Fiquei pensando agora na resposta. Eu acho minha vida tão difícil. Eu estou aqui [em são Paulo] há dois dias e fico pensando no meu filho. O Estevão também está aqui e ele [filho do casal] está lá só com a babá. Fico pensando: vou tentar um Skype agora. Eu já acho isso uma loucura, com toda a infra que eu tenho, imagina aquela mulher que sai às 5h da manhã, deixa quatro filhos e trabalha o dia inteiro às gargalhadas no Saara e depois vai para o samba? Eu me comovo muito com esse prazer de ser e estar, de uma existência que não abre mão da felicidade, apesar da desigualdade, da intolerância, de todos os ódios e divisões. É tão inspirador. Eu observo com tanta avidez e vontade de aprender que... fica legal (risos).