Joãosinho acreditava na missão política da arte, diz Matheus sobre "Trinta"
Aos 45 anos e quase 20 de carreira, Matheus Nachtergaele é um homem inquieto. Não só na maneira agitada de falar e gesticular, mas também no trabalho, intenso e variado, que inclui desde personagens amados da TV –como o João Grilo da série “O Auto da Compadecida”–, até papéis mais pesados no cinema –como o doentio Everardo de “Baixio das Bestas” e o homossexual Dunga, de “Amarelo Manga”, ambos do pernambucano Cláudio Assis.
O mais recente papel do ator, em um momento da carreira que ele define como “inventivo”, é o carnavalesco Joãosinho Trinta. Na cinebiografia “Trinta”, de Paulo Machline, que estreia nesta quinta (13), Matheus retrata o início da carreira do artista, quando ele ainda era apenas João Clemente Jorge Trinta, um maranhense que vai para o Rio tentar ser bailarino no Teatro Municipal e é apadrinhado por Fernando Pamplona, cenógrafo e carnavalesco.
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A frase 'quem gosta de miséria é intelectual, pobre gosta mesmo é de luxo' não é um cacoete, ela é uma frase política. Ela quer dizer: 'nós queremos viver bem, nós gostamos de coisas bonitas'.
O filme foca os anos de 1960 a 1973, justamente quando Trinta faz a passagem do Municipal para o barracão do Salgueiro, onde assina seu primeiro Carnaval e vence seu primeiro campeonato, com o enredo “O Rei de França na Ilha da Assombração”.
Sobre o único encontro que teve com o carnavalesco, já escalado para o papel, Matheus conta que João enfatizou que o importante era mostrar “que ele lutou a vida inteira para fazer do Carnaval uma bandeira do valor e da alegria brasileiros. Ficou muito claro que ele acreditava profundamente na missão política que a arte tem”, diz.
Em entrevista ao UOL, o ator falou também de suas inspirações, da necessidade de aprender balé e da versatilidade que marca sua carreira.
UOL - Você já contou que, no único encontro que teve com o João, em três horas ele resumiu o que era essencial para ele. Que coisas foram essas?
Matheus Nachtergaele - Acho que ele basicamente quis deixar muito claro que não interessava um filme de fofoca sobre a vida pessoal dele, que isso não era importante. Mas não porque ele tivesse medo disso, mas porque achava que o mais importante era o fato de ele ser um homem nordestino, de origem humilde, e que ele lutou a vida inteira para fazer do Carnaval uma bandeira do valor e da alegria brasileiros. Ficou muito claro naquele breve encontro que ele acreditava profundamente na missão política que a arte tem. A frase 'quem gosta de miséria é intelectual, pobre gosta mesmo é de luxo', não é só o que parece. Ela não é um cacoete, ela é uma frase política. Ela quer dizer: 'nós queremos viver bem, nós gostamos de coisas bonitas'. Não queremos ser objeto de uma antropologia qualquer sobre as misérias humanas. Queremos ser objeto de uma antropologia sobre a beleza, sobre a cultura, sobre a arte humana, sobre a abundância. É isso que ele quer dizer. É um homem extremamente humanista.
Trailer de "Trinta"
No que você se inspirou para interpretar o Joãosinho Trinta?
Eu acho que o que mais me chamou a atenção, não só no único encontro que eu tive com o Joãosinho, mas também das lembranças que eu tinha dele falando em público, das entrevistas, além das coisas óbvias --de ser um gênio, de ser um obcecado, um homem que tinha um pensamento de vanguarda sobre o que o Brasil pode ser--, era um certo olhar espantado para o mundo. Eu via nos olhos do João um encantamento infantil, e esse encantamento infantil sempre tem encanto e medo. Isso foi fundamental para a minha construção. Outra coisa muito importante foi o balé.
Por quê?
Nunca imaginei que aquela figura baixinha e barrigudinha tinha sido um bailarino profissional do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Então, fui fazer aulas de balé. Isso me ajudou a entender a obstinação do João, e também a deixar meu corpo um pouco mais ereto do que ele é. Na composição física, foi a única coisa que eu fiz, além de permanente no cabelo e de escurecermos um pouco a minha pele.
E no que você se concentrou para contar a história dele?
Eu fui me concentrando nos desafios que foram se somando diante dele, nesse cara que vem do norte, fica sozinho no Rio tendo que sobreviver longe da família, que sofre preconceito porque quer ser bailarino. Depois, quando finalmente acontece, não consegue destaque. E aí a grande virada, que é a hora em que o Pamplona rompe com o Salgueiro e ele assume o Carnaval. E a solidão desse homem no meio daquele barracão cheio de gente que não entende o que ele diz. Porque o período dele no Municipal o transformou em um homem de alta cultura. Ele está fazendo um Carnaval para o Salgueiro, mas o Salgueiro não entende. Ele está revolucionando o Carnaval para sempre. Tem uma solidão bonita isso. Eu achei um dos personagens mais lindos que eu já recebi. Espero ter feito à altura.
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Eu não acredito em uma arte que não possa ser ouvida no seu tempo. Acho que o Joãosinho Trinta também [não acreditava].
Esse é mais um trabalho de uma carreira muito eclética, que tem tanto papéis queridos pelo público de TV, quanto papéis mais difíceis. Como você consegue ser tão versátil?
Acho que eu sou muito curioso, muito inquieto. Eu gosto de poder me comunicar com as pessoas. Ao mesmo tempo, gosto de investigar linguagens, de desafiar alguns conceitos. Eu seria infeliz se fosse um ator que só fizesse um tipo de trabalho. De vez em quando eu preciso fazer um trabalho de investigação, me colocar à prova, ultrapassar meus limites. E de vez em quando eu preciso me comunicar de verdade com a maioria das pessoas. Eu não acredito em uma arte que não possa ser ouvida no seu tempo. Acho que o Joãosinho Trinta também [não acreditava]. Então, acho que o meu cinema mais radical ele é também para formar um público mais livre. E o meu cinema mais ‘popular’ é para falar com todo mundo, com arte. E assim eu me sinto feliz.
Você está com 45 anos, quase 20 de carreira, reconhecido pela crítica e pelo público. Nessa trajetória, o que você tem orgulho de ter conquistado e o que ainda falta?
Eu vou usar a alegoria do Carnaval: acabado o desfile, por mais lindo que ele tenha sido, sobra um lixo feito de plumas e paetês, que tem que ser recolhido. E você começa de novo o próximo desfile, que tem que ser novo e será necessariamente um desafio para você e para todo mundo que estiver junto, e para a plateia. A gente não conquista nada, a gente dá um passo. Às vezes para a frente, às vezes para trás, às vezes para o lado. Às vezes passamos um período muito inventivo. Em outros períodos você está mais avaliando teu trabalho e o mundo. Às vezes, tomando fôlego para radicalizar alguma ideia. Às vezes, com vontade de simplesmente divertir as pessoas. A cada etapa, um desafio novo se impõe. Eu absolutamente me sinto sempre despreparado em cada trabalho. Nunca fico confortável quando chega um convite, sempre respiro fundo e falo: 'meu Deus, como vai ser isso?'.
E qual é o momento atual?
Eu estou em um período de bastante trabalho. Tem a estreia do 'Trinta', tem dois filmes na lata --o 'Sangue Azul', do Lírio Ferreira que já esteve no Festival do Rio e em Paulínia e estreia no início do ano que vem, e com o Cláudio Assis tem um quarto longa que a gente fez juntos, 'Big Jato', que também vai ser lançado no ano que vem. Eu saio do lançamento do 'Trinta' e começo a filmar um projeto da Anna Muylaert em São Paulo. Estou bem produtivo nesse momento, com projetos muito do meu coração, e produzindo teatro. Vou fazer teatro no ano que vem. Faz tempo que não tenho tempo de fazer isso e me sinto em débito com as pessoas e comigo, de estar junto com elas fisicamente, para fazermos uma oração bem profana. Não vou dizer o que é, porque depende de uma compra de direitos que está sendo negociada, mas já tem uma produção andando, já tem diretor, já está acontecendo. Se tudo der certo, consigo estrear ainda no primeiro semestre do ano que vem. Eu preciso estar com as pessoas.
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