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Cinebio de Hawking segue fórmula inglesa de filmes "quadrados" para o Oscar

Eduardo Graça

Do UOL, em Nova York (EUA)

30/01/2015 06h00

Quando a união de subgêneros se transforma em tendência, o resultado pode ser: a) uma explosão nas bilheterias, dominadas por filmes de super-herói ou voltados para o público juvenil; b) uma saraivada de indicações ao Oscar; e c) a aposta em narrativas dramáticas mais convencionais, evitando-se riscos no argumento, na adaptação, nas filmagens.

A resposta correta para a temporada de premiações do cinema americano parece ser todas as opções acima. Nesta semana chega aos cinemas brasileiros “A Teoria de Tudo”, de James Marsh, a cinebiografia de Stephen Hawking a partir do livro homônimo escrito por sua ex-mulher --e mãe dos três filhos do físico-- Jane Wilde. Uma semana depois é a vez de “O Jogo da Imitação”, de Morten Tyldum, em torno da trágica história do matemático Alan Turing, responsável direto por uma das maiores vitórias dos Aliados na Segunda Guerra Mundial e condenado à prisão por ser homossexual na Grã-Bretanha dos anos 1950.

Ambos britânicos, os filmes, juntos, receberam 13 indicações a o Oscar (cinco para “Teoria”, oito para “O Jogo”), e seguem fórmula parecida: a cinebiografia sem grandes polêmicas, mesclada com o que os ingleses batizaram de "filme de prestígio" –e os críticos acusam de falta de ousadia–, cujo exemplo de maior sucesso recente foi “O Discurso do Rei”, prêmio de melhor filme, diretor (Tom Hopper), roteiro original e ator (Colin Firth), em 2011.

"A maior preocupação que tivemos foi a de fazer jus à história do Stephen e da Jane", diz, em entrevista ao UOL, Eddie Redmayne, indicado ao Oscar de melhor ator por sua rendição do autor de “Uma Breve História do Tempo”. "Primeiro queríamos que eles ficassem felizes, que a família toda aprovasse nossas interpretações. Quando eles viram o filme e, com toda a generosidade, disseram que gostaram do que fizemos, o maior prêmio já estava conquistado. Beeeem depois vem toda esta história de Oscar, que, obviamente, infla meu ego. E, quem sabe, muito mais interessante, acabe animando as pessoas a saírem de casa para ver o filme", conclui.

Um projeto do roteirista e escritor neo-zelandês Anthony McCarten, o filme é baseado na segunda edição da biografia escrita por Wilde, uma especialista em literatura formada na Universidade de Oxford, em Cambridge, onde conheceu Hawking, seu primeiro marido. A edição original, mais cáustica, foi lançada em 1998, três anos depois do divórcio do casal. O cientista casou-se anos depois com sua enfermeira, de quem se divorciou em 2005. Jane vive com o segundo marido, Jonathan, que tem papel de destaque no filme, já que entra no convívio familiar dos Hawking quando os três filhos do casal ainda são crianças.

Trailer do filme "A Teoria de Tudo"

"Houve um momento em que os Hawking tiveram de tomar decisões bem pouco ortodoxas no que se refere à vida privada deles. A vida pública do Stephen é bem conhecida, mas ainda há gente, por exemplo, que pensa que ele sempre viveu em uma cadeira de rodas", conta McCarten. "E não conheço outra história em que A vive com B e com permissão de A, B começa a se relacionar com C e, com a permissão de B, A começa a se relacionar com D. É uma visão de ‘família moderna’ à frente de seu tempo, e que claramente não foi fácil de se estabelecer, mas de fato aconteceu".

Depois de ler o livro repetidas vezes, McCarten bateu na porta de Jane e iniciou um processo de convencimento que só terminou quando a benção de toda a família foi dada à adaptação da história dos Hawking para o cinema. A esta altura, o professor já havia se separado de sua segunda mulher, sua ex-enfermeira Elaine, que aparece brevemente no filme. Jane, seu segundo marido, o músico Jonathan Jones e Stephen estiveram próximos da produção, e um dos momentos mais marcantes das filmagens, para todos os envolvidos, foi a presença do último no set quando Marsh conduzia dezenas de figurantes na cena do baile em Cambridge, uma das mais românticas do filme.

Jornalistas e críticos, no entanto, reclamam da ausência de detalhes sobre a infidelidade no casamento dos Hawking, presente na biografia; da dificuldade do relacionamento de Jane com a família do marido, pintada no livro com as cores da arrogância intelectual e culminando na suspeita da sogra de que o terceiro filho do casal era de Jonathan; da transformação romântica do mesmo Jonathan que, ao contrário do filme, jamais passou um tempo afastado dos Hawking para que Jane refletisse sobre seu casamento e o papel de um novo amor em sua vida em família; das escapadelas de Stephen com Elaine, nada consensuais no que se refere a Jane.

"A história é delicada, o tema é delicado, eu só tive a certeza de que o filme sairia do papel há dois anos, quando Jane finalmente deu o sinal verde para começarmos a filmar. Eu a convenci de que queria contar a verdade, mas que, no fim, 'A Teoria de Tudo' seria uma celebração da vida dos Hawking. Fui eu quem a convenci a fazer uma segunda edição da autobiografia, cuja edição original estava esgotada", diz McCarten. "Ela então decidiu fazer uma pequena revisão e retirou certos trechos, certas passagens mais emocionais que haviam sido duramente criticadas pela imprensa britânica. Mas ela não mudou nada do roteiro, a não ser uma música dos Rolling Stones que aparecia no filme em um momento histórico anterior ao de o single ter sido lançado. E só".

O Jogo da Imitação

“O Jogo da Imitação”, o outro inglês de destaque no Oscar 2015, que estreia no dia 5 de fevereiro, também foi baseado em um livro, neste caso escrito pelo matemático Andrew Hodges, e gira em torno do absurdo das leis anti-gays da Inglaterra do século passado, em oposição aos atos heroicos do homem que desbaratou o principal modelo criptográfico usado pelos nazistas para comunicação durante a Segunda Grande Guerra.

O filme, estrelado por Benedict Cumberbatch e Keira Knightley, foi duramente criticado por não mostrar, em momento algum, qualquer envolvimento romântico homossexual de seu personagem central, um homem cuja vivência de sua sexualidade, afinal de contas, causou sua morte. Turing se matou depois de concordar em iniciar um processo de castração química –opção oferecida pela Justiça no lugar da prisão–, que afetou sua saúde e intelecto de forma violentíssima.

O filme carregou na ficção, no entanto, no amor platônico de Turing por um colega de internato, cuja morte repentina o faz batizar seu principal experimento durante o esforço de guerra com o nome do amigo. Na realidade, ele sabia do estado de saúde de seu parceiro e jamais deu a seu invento, crucial para a resolução do filme, o nome de Christopher. Além disso, o matemático contou desde o início para a colega Joan Clarke (Knightley) que preferia homens a mulheres, não existindo a subtrama retratada no filme, gerada pelo desconhecimento desse fato.

Decisões de se optar pela elasticidade ficcional em relação à realidade, e até mesmo às principais fontes de pesquisa, não são novidade em Hollywood e outro filme baseado em fatos reais na disputa para o Oscar 2015, “Selma”, também tem sofrido o ataque de especialistas no movimento pelos direitos dos negros dos EUA, especialmente no que diz respeito à relação de Martin Luther King Jr. com o presidente Lyndon Johnson.

Mas, como aponta McCarten, se estas pequenas liberdades podem de fato ser cruciais para a transposição da obra literária para a tela grande, no caso das, vá lá, "cinebiografias de prestígio", há o perigo de se reduzir histórias filmadas em torno de personalidades da dimensão de um Hawking ou Turing a uma fórmula palatável para o cinemão americano, um caçador de Oscar à inglesa, como bem apontou a editora de cinema do jornal inglês “The Guardian”, Catherine Shoard. Nas próximas duas semanas, o público brasileiro poderá decidir se “A Teoria de Tudo” e “O Jogo da Imitação” se encaixam na categoria de "filmes de prestígio" ou de biografias "chapa-branca".