"Ele sabia que estava próximo do fim", diz Moreira Salles sobre Coutinho
Em seu último filme, o diretor Eduardo Coutinho trava um diálogo sobre a vida e a morte com um dos estudantes do ensino médio de escolas públicas do Rio de Janeiro. O rapaz divaga sobre o amor trágico: “A vida é amar ou morrer”, sentencia. Coutinho intervém, sempre com o cigarro entre os dedos. “Não, é amar e morrer. Não existe ‘ou’. São os dois”.
“Últimas Conversas”, que estreia nesta quinta-feira (7), dá voz e um espaço inédito para a juventude brasileira, com depoimentos de alunos do terceiro colegial sobre bullying, cotas, amores e família, mas também joga luz no próprio Coutinho, morto em 2 de fevereiro do ano passado, quando finalizava as filmagens. Ao mesmo tempo em que o cineasta debate medos, amores e frustrações com os entrevistados, as filmagens mostram sua própria busca em dialogar com o mundo.
Pesquisador da fala e da memória, Eduardo Coutinho tinha receio de que a matéria-prima básica de seu trabalho, o componente ficcional das recordações, ficasse comprometida com os jovens. Diferente dos mais velhos, eles vivem o presente e não guardam a mesma relação com o passado. Em certo momento, quando versa sobre o assunto, Coutinho fala em desistir do processo. “É melhor não fazer do que ter um filme de 70 minutos em que não se acredite", diz, durante o filme. “Devia ter feito com crianças”.
O diretor de 80 anos ainda carregava outas angústias menos circunstanciais. “Ele sabia que estava se aproximando do fim. A saúde estava frágil, a alma parecia desconectada das coisas. O cinema sempre lhe dera uma conexão com o mundo, e agora isso parecia não funcionar mais. Ele temia estar perdendo a ligação com a vida”, explica o amigo e produtor dos filmes de Coutinho, João Moreira Salles.
Salles sobre Coutinho
Ele sabia que estava se aproximando do fim. A saúde estava frágil, a alma parecia desconectada das coisas. O cinema sempre lhe dera uma conexão com o mundo, e agora isso parecia não funcionar mais. Ele temia estar perdendo a ligação com a vida
UOL - O filme abre com Eduardo Coutinho preocupado com o rumo que o filme pode tomar. Não era a primeira vez que o diretor se via, durante as filmagens, em uma encruzilhada. Como costumava ser esse processo – a descoberta do filme durante a produção -- para Coutinho?
João Moreira Salles - Dessa vez a coisa era um pouco diferente. Coutinho enfrentava vários problemas ao mesmo tempo. O mais circunstancial deles dizia respeito ao filme. O cinema dele é feito de pessoas que relatam a vida passada. A presença do tempo é imensa, com tudo o que o tempo faz à memória. Quando maior o espaço entre a experiência e a memória da experiência, maior o componente ficcional dessas recordações. Essa camada de invenção era central ao cinema dele. Aqui, isso não existe. Para jovens, o presente é mais vivo do que o passado. O cinema dele resistiria a isso? As outras angústias diziam respeito a questões profundas, de vida e de morte. Ele sabia que estava se aproximando do fim. A saúde estava frágil, a alma parecia desconectada das coisas. O cinema sempre lhe dera uma conexão com o mundo, e agora isso parecia não funcionar mais. Ele temia estar perdendo a ligação com a vida. O arco do filme mostra que o temor foi superado.
Quanto tempo depois da morte do diretor você e a Jordana Berg sentaram para trabalhar no filme? Você sabia qual era o filme que o Coutinho tinha em mente?
Na mesma semana. Talvez dois ou três dias depois do enterro dele. Os primeiros dias de trabalho – ao menos, os meus – foram dedicados a ver todo o material. Em seguida, Jordana e eu conversamos sobre cada um dos personagens. A nos guiar, tínhamos as anotações que Coutinho fizera à margem da transcrição do material e também nossa longuíssima convivência com ele.
Vocês disseram que chegaram a finalizar uma versão diferente do filme que estreia nesta semana. Como era esse primeiro corte e por qual razão ele foi modificado?
A pergunta que se impôs desde logo foi a seguinte: que filme estamos fazendo? Aquele que se aproxima de “um filme de Coutinho”, ou um filme feito desde nosso ponto de vista, a partir do material filmado por ele? Os seis primeiros meses foram dedicados a realizar o primeiro filme. Jordana e eu conhecemos suficientemente bem a obra dele para afirmar que esse corte, que ficou pronto, provavelmente não divergiria muito do filme que ele teria realizado. Quando demos essa etapa por concluída, achamos que devíamos tentar o segundo filme, que no fundo é o único do qual podemos assumir a responsabilidade. Prevaleceu esse segundo filme.
Coutinho acreditava que os adolescentes já vinham “castrados” para a entrevista e que isso prejudicaria o filme. Você também acha isso?
Que eles vêm castrados, sim, e não só pelos pais, mas também pela pressão dos pares. É essa fase tão difícil da vida em que você luta para se ajustar, para ser aceito, para não ser diferente, mas igual. O bonito é quando se rompe com isso. A obra do Coutinho se assenta na crença radical de que só o que importa é a singularidade, o que em cada um é intransferível. Esse patrimônio único é a riqueza a qual vale a pena chegar, e Coutinho chega a ela nas conversas desse filme.
O filme acaba sendo muito sobre o Coutinho também. Ele aparece e fala muito mais que em qualquer outra produção. Ele se expõe mais por que estava mais ansioso durante as filmagens (pela insegurança com o objeto filmado) ou isso é resultado da edição?
Talvez a edição tenha chamado mais atenção para isso. Afinal, o filme não é mais apenas dele, mas da Jordana e meu também, e nossa saudade dele é muito grande. Coutinho está presente em todos os seus filmes, e não apenas pelo fato meio banal de a obra ser uma expressão do desejo e da imaginação dele. É bem mais do que isso. A recorrência dos mesmos temas ao longo de tantos filmes rodados com personagens de origens tão diferentes deixa claro que o denominador comum sempre foi ele, Coutinho. Por que o tema da morte está tão presente em conversas com jovens que sequer chegaram aos vinte anos? Porque a morte era um assunto dele, assim como a fé, a metafísica da morte e a relação pai e filho. As conversas são ricas porque ele não se esvaziava de si mesmo, como cansou de dizer, mas se punha ali, a pleno, com seus medos e suas angústias, à cata de alguém com quem pudesse passar alguns minutos compartilhando as alegrias e os medos de quem está vivo. Quando funcionava, era como ele diz no documentário do Carlos Nader: “Eu te dei alguma coisa, você me deu alguma coisa”. É isso a dádiva.
A cena em que Coutinho finalmente conversa com uma criança, como ele mesmo queria, já é antológica. Há ali mais do que um encontro de gerações, são as duas pontas da vida. Em que circunstância aquela cena aconteceu? Coutinho chegou a entrevistar outras crianças?
Sim, é o encontro luminoso das duas pontas da vida. E mais: para quem passou a vida atrás de quem pudesse dar novo lustre às palavras, onde mais buscar esse brilho senão na fala de uma criança para quem tudo ainda é novo? Foi como chegar à fonte. Luiza, que é sobrinha da produtora do filme Carolina Benevides, foi um presente da equipe. No último dia, eles levaram duas crianças para conversar com Coutinho. Luiza era a mais nova das duas.
A julgar pelas enormes filas nas exibições do filme no “É tudo Verdade” – e muito pelas manchetes sobre sua morte–, Coutinho parece que está sendo descoberto por muita gente agora.
Espero que sim. Não pelo Coutinho, mas pelas pessoas. É muito bom descobrir alguém como ele.
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