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Diretor revela a saga para tirar novo "Mad Max" do "necrotério"

Ana Maria Bahiana

Do UOL, em Los Angeles

13/05/2015 06h00

Trinta anos depois dos acontecimentos mostrados na primeira trilogia “Mad Max” (1979, 1981 e 1985), a Terra continua devastada, e os humanos brutalizados, no novo capítulo da saga, “Estrada da Fúria”. O protagonista Max Rockatansky segue adaptado à realidade da perda brutal de sua família com uma resignação que é quase apatia. O bem mais precioso, no entanto, não é mais gasolina, mas água –e escravos.

“A ideia me ocorreu em 1998, quando eu estava em Los Angeles atravessando uma dessas avenidas enormes que tem aqui”, diz George Miller, diretor e roteirista dos quatro longas. “Na progressão natural da narrativa de ‘Mad Max’, a violência entre os sobreviventes não diminuiria, pelo contrário. E os próprios sobreviventes, os seres humanos, seriam os bens mais disputados.”

De volta à Austrália, sua terra natal, Miller escreveu um primeiro argumento desenvolvendo esse esboço de história. “Eu tinha muito material de onde tirar ideias”, ele explica. “Enquanto eu estava fazendo os primeiros ‘Mad Max’, estava sempre escrevendo e anotando ideias de histórias de pano de fundo, causas e consequências, narrativas paralelas, novos personagens possíveis. Mal sabia eu que ainda teria tempo para escrever muito mais…”

Verdade. Em 1999, um roteiro estava pronto, escrito a seis mãos por Miller, o artista gráfico (e fã de ‘Mad Max’) Brendan McCarthy e o ator e roteirista australiano Nico Lathouris (que fez uma ponta como um mecânico no primeiro ‘Mad Max’). Com o financiamento dos mesmos investidores da trilogia e a participação confirmada de Mel Gibson, as filmagens foram marcadas para setembro de 2001 –e nunca começaram. Os acontecimentos de 11 de setembro daquele ano e a profunda crise financeira que se seguiu foram o primeiro obstáculo. ”

george miller

  • Getty Images

    Muitos anos atrás, eu tive a oportunidade de fazer um filme que reverenciava tudo o que eu mais amava no cinema: a possibilidade da ação pura dos westerns , filmes mudos, filmes de aventura. Tínhamos poucos recursos e muita inventividade e conseguimos tocar os corações de muita gente pelo mundo afora. Agora, finalmente, eu posso voltar a esse mundo e fazer uma ópera rock

    George Miller, diretor

Em 2003, Miller anunciou que o roteiro havia sido reescrito, o financiamento estava “praticamente acertado” –US$ 100 milhões, todos vindos da Austrália—e as filmagens iriam começar “em breve”. A guerra no Iraque, porém, assustou os investidores, que passaram a ver o projeto como “politicamente delicado”. Por fim, além do encolhimento do dinheiro, o desinteresse de Mel Gibson pôs o filme, mais uma vez, na gaveta. “Na geladeira do necrotério, foi o que eu achei”, diz Miller. “Achei que tinha morrido de vez."

Miller ocupou-se com trabalhos diversos, entre eles games e os dois longas de animação “Happy Feet”. Mas o que ele chama de “o fantasma de Mad Max” nunca o deixou. Pensou em Heath Ledger para o papel. Considerou a hipótese de realizar o projeto como uma animação 3D, com um jogo de videogame como obra paralela. Em 2009, finalmente, “as coisas começaram a se encaixar”, Miller diz. 

Um roteiro enxutíssimo, curtíssimo, com muito pouco diálogo, foi convertido em 3.500 painéis de ‘storyboards’, realizados por cinco diferentes artistas. A Village Roadshow, parceira da Warner na Austrália, fechou um orçamento de US$ 150 milhões. E o diretor começou a mandar roteiro e propostas para atores cuidadosamente escolhidos.

Um novo Mad Max

“Eu estava filmando ‘Guerreiro’ com Joel Edgerton quando ele recebeu o roteiro”, Tom Hardy recorda. “Pensei ‘está certo, é um projeto australiano, os [atores] australianos têm mesmo que ter prioridade. Não vou mais pensar no assunto’. O mundo dos atores é muito pequeno, e todo o mundo sabia que o projeto de um novo ‘Mad Max’ tinha voltado à ativa e que George Miller estava procurando um novo Max, que ainda não tinha achado… Eu achei que era normal que estivessem procurando um Max entre os atores australianos e não disse nada, mas interiormente… É… Fiquei com vontade… E com uma ponta de inveja.”

Hardy não precisou esperar muito –algumas semanas depois de encerradas as filmagens de “A Origem” (que se seguiram a “Guerreiro”), ele recebeu um convite para um teste, em Los Angeles. “Cheguei lá esperando um teste-teste, e foi algo completamente diferente –uma conversa com George e com Nico Lathouris, que eu conhecia como ator, mas que estava trabalhando na estrutura do roteiro. Foi um papo ótimo de duas horas sobre teatro e análise de personagem e um monte de coisas nerd. Saí de lá encantado, mas ainda mais preocupado. Agora eu queria mesmo estar no filme.”

Tom Hardy

  • Reprodução

    Comecei a pensar que, na mente das pessoas, dos muitos fãs do filme, Mad Max é Mel Gibson. Os dois nomes são sinônimos. Há algo muito assustador nisso. No começo, eu me senti como o novo garoto da classe, entrando num mundo onde as pessoas talvez não gostem de mudanças

    Tom Hardy, ator

Poucos dias depois, Miller fez uma oferta firme para Tom Hardy: ele seria o próximo Mad Max. “Acho que ele fez uma pesquisa de antecedentes com outros diretores para saber como era trabalhar comigo”, diz Hardy. Christopher Nolan, que dirigiu o ator em “A Origem” e “Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge”, confirmou. “George me ligou quando estávamos na pós-produção de “A Origem” querendo saber como era trabalhar com Tom”, ele disse, na época do lançamento de “A Origem”. “Eu disse que não havia coisa melhor, que ele é um ator seríssimo e uma pessoa muito divertida.”

“Eu me senti profundamente agradecido, acima de tudo”, diz Hardy. “Depois, eu comecei a pensar que, na mente das pessoas, dos muitos fãs do filme, Mad Max é Mel Gibson. Os dois nomes são sinônimos. Há algo muito assustador nisso. No começo, eu me senti como o novo garoto da classe, entrando num mundo onde as pessoas talvez não gostem de mudanças. Minha saída foi pensar que, na verdade, Mad Max é George Miller –o personagem saiu da imaginação dele, e ele poderia me ajudar a criar a minha interpretação de Max.”

Mulher na liderança

O que Tom Hardy logo descobriu é que um resultado da longa, lenta e tumultuada trajetória do quarto “Mad Max” tinha sido um reposicionamento radical de Max –a tomada da liderança da trama por uma mulher, a personagem Imperator Furiosa, de Charlize Theron. “Ela veio de uma das histórias de pano de fundo que eu vinha escrevendo esse tempo todo”, diz Miller. “Num mundo devastado, as mulheres serão uma das coisas mais preciosas. A vida em pessoa. Numa sociedade brutal, o desejo de controlar as mulheres seria uma consequência natural. Basta ver o que já estamos vendo hoje, os raptos, os estupros, os casamentos forçados. Mas eu não queria uma história de vitimização das mulheres, queria mulheres que tomassem o controle para reverter essa narrativa. Foi daí que surgiu Furiosa.”

Charlize Theron

  • Reprodução

    Eu amei que minha personagem comece assim, como alguém absolutamente indefesa, que pode ser usada e descartada. Uma mulher partida, que se transforma em uma mulher extraordinária. É como se George estivesse dizendo: "Agora vou mostrar a vocês uma mulher de verdade"

    Charlize Theron, atriz

Miller também diz que tinha uma figura feminina “muito específica” para a personagem. “Alguém que sem sombra dúvida fosse uma figura de mulher e fosse  uma guerreira, durona, intimidadora, uma mulher-alfa. Personagens assim aparecem nos ‘Mad Max’ anteriores. Agora eu queria que uma delas fosse central para a narrativa. Quando vi Charlize, eu parei de procurar. Era a atriz certa.” E enfatiza: “Charlize foi bailarina e até hoje faz balé. Para o filme que eu tinha em mente, precisava de alguém assim, em controle absoluto do seu corpo e capaz de pensar fisicamente, de forma super-rápida.”

“A ideia de como as mulheres sobreviveriam num mundo pós-apocalíptico é muito central na mitologia toda de ‘Mad Max’”, diz Charlize. “É uma preocupação constante de George. E se elas não conseguissem se defender, sobreviver? Que opções teriam? Eu amei que minha personagem comece assim, como alguém absolutamente indefesa, que pode ser usada e descartada. Uma mulher partida, que se transforma em uma mulher extraordinária. É como se George estivesse dizendo: ‘Agora vou mostrar a vocês uma mulher de verdade’.”

Equipe de confiança

Miller completou elenco e equipe com pessoas-chave de sua confiança. Hugh Keays-Byrne, que fez o antagonista no primeiro “Mad Max” –o cruel Toecutter--, é agora o líder da nova ordem social, o  megavilão Immortan Joe. Para uma grande parte das manobras mais arriscadas, o diretor convocou um fiel colaborador, Guy Norris, coordenador de dublês e diretor de segunda unidade da primeira trilogia “Mad Max”. “Ele dirigiu comigo as cenas de ação e fez seu último trabalho como dublê na última cena de ‘Estrada da Fúria’”, Miller conta. “Agora ele está mesmo aposentado.”

Já para a câmera, Miller literalmente tirou da aposentadoria o diretor de fotografia John Seale, responsável pelos primeiros “Mad Max”. “Nós nos comunicamos sem nem precisar falar”, Miller diz. “O que, num filme destes, é absolutamente essencial.” No longa, que foi rodado quase sem pausas, equipe e elenco tiveram tempo para celebrar uma data importante: “Johnny fez 70 anos no set, durante as filmagens”, Miller conta. “Ei, se os Rolling Stones conseguem, por que nós não vamos conseguir?”

Com um orçamento e uma equipe maior que os três primeiros “Mad Max” juntos, Miller escolheu o deserto Namib, no sudoeste africano, como sua principal locação. Uma imensa vastidão vermelha, na qual temperaturas chegam facilmente além dos 40°C diariamente e onde quase nunca chove, o Namib se estende por três países: Angola, Namíbia e África do Sul, o último, terra natal de Charlize Theron. A região também já foi usada como cenário de vários filmes, como “Amor sem Fronteiras”, “A Cela” e “O Voo da Fênix”.

História contada em imagens

Durante cinco meses, de julho a dezembro de 2012, as filmagens seguiram um ritmo rigoroso, muitas vezes extenuante. Miller optou por fazer “tantos efeitos quanto fossem humanamente possíveis sem matar ninguém” diante das câmeras, sem recursos de manipulação digital na pós-produção. Até mesmo o uso de dublês foi reduzido ao máximo (o que levou os custos de seguro da produção à estratosfera), deixando para os atores muitas das cenas perigosas.

Veja o trailer legendado de "Mad Max: Estrada da Fúria"

Com um roteiro depurado a um mínimo, por opção – “É a imagem que deve contar a história. O filme de ação é, dessa forma, a coisa mais próxima do puro conceito de cinema”, diz Miller–, o elenco frequentemente tinha que improvisar suas cenas, sem perder o pique físico. Para facilitar tanto a logística quanto a imersão dos atores, “Mad Max: Estrada da Fúria” foi rodado, sempre que possível, na ordem cronológica dos acontecimentos da trama. A principal exceção foram as filmagens adicionais, em novembro de 2013.

E para criar a “experiência imersiva” que Miller desejava para o filme –“Sim, como um videogame. Por que não?”–, a equipe comandada por Johnny Seale trabalhou com 11 câmeras digitais. “Sim, destruímos algumas delas”, diz Miller. “Mas conseguimos o que queríamos.”

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  • Divulgação

    Sei lá, adoro arrebentar com veículos.

    George Miller

O resultado é um filme eletrizante que, como os melhores clássicos dos gêneros que George Miller admira –ação, drama de guerra, faroeste– impulsiona a história exclusivamente pela imagem. Não é exagero dizer que “Estrada da Fúria” é, basicamente, uma única perseguição de duas horas de duração, durante a qual, por meio de suas ações e reações, conhecemos os personagens, seus mundos interiores, seus desejos.  De um lado, Furiosa , a “carga preciosa” que ela roubou de Immortan Joe, e Max, que ela resgatou no meio do caminho. De outro, o vilão e seu império pós-apocalíptico de guerreiros que vivem para morrer gloriosamente a serviço de seu líder. “Eu me inspirei na ideia de Valhalla, na mitologia nórdica”, diz Miller.

“Muitos anos atrás, eu tive a oportunidade de fazer um filme que reverenciava tudo o que eu mais amava no cinema: a possibilidade da ação pura dos westerns , filmes mudos, filmes de aventura. Tínhamos poucos recursos e muita inventividade e conseguimos tocar os corações de muita gente pelo mundo afora”, diz Miller, sobre o primeiro “Mad Max”.  “Agora, finalmente, eu posso voltar a esse mundo e fazer uma ópera rock. Música para os olhos, numa escala de ópera, com ritmo rock and roll.” E acrescenta: “E muitos carros explodindo e sendo destruídos. Porque, sei lá, adoro arrebentar com veículos.”