Vigia em bairro nobre de SP tenta transformar bicos de ator em profissão
O encontro com Kaique Jesus, protagonista do filme "Tudo que Aprendemos Juntos" ao lado de Lázaro Ramos e Elzio Vieira, foi marcado estrategicamente às 14h de uma terça-feira, em São Paulo. Era um horário favorável, que não atrapalhasse o descanso nem o outro trabalho do jovem ator de 21 anos.
Kaique, que iniciou a carreira no premiado "Linha de Passe" (2008), de Walter Salles, trabalha em uma guarita como vigia de residências no Jardim Europa, bairro nobre da zona oeste de São Paulo, das 17h às 5h, de segunda a sexta. Ele dorme pouco mais de 4 horas por dia para dar tempo de ir à academia e, agora, cumprir os compromissos que envolvem o filme dirigido por Sérgio Machado ("Cidade Baixa") e que está na programação da 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
"Medo de trabalhar como segurança? Medo, não. Dá sono mesmo", ele ri. "Mas já estou acostumando. O bom desse trabalho é que eu posso parar, viajar com o filme e depois voltar ao meu posto". Apesar de ser seu trabalho fixo, Kaique considera a função de segurança como "bico" e a profissão oficial, a de ator.
Vestindo uma camisa polo branca e calças jeans, Kaique é um jovem tímido. Esforça-se para olhar no olho do interlocutor, ri aos finais das frases que podem soar como dramáticas, como se quisesse aliviar a tensão, mas não foge de nenhuma pergunta. Também sabe que as oportunidades na carreira não dependem só de seu empenho.
"Ainda há pouco espaço para atores negros na TV e no cinema. Precisam de um motoboy? É branco. Surfista? Branco. Bandido? Aí é um preto, né? Bastam dez minutos de TV para perceber isso. É um preconceito que nem sei se um dia vai acabar", diz.
Carreira de altos e baixos
Baiano, Kaique tinha pouco mais de 1 ano de idade quando se mudou para São Paulo com os pais. Desde então, vive na estrada de Itapecerica, próximo ao Capão Redondo. Com ensino médio e formação completa na escola de teatro Macunaíma, ele sonha em poder viver só de atuação, mas ainda não é possível. “Cinema é assim. Num dia está todo mundo tirando fotos, fazendo entrevista. No outro, você está desempregado. Tem que ter cabeça boa para levar e ter sempre um plano B”.
O plano B do jovem já está definido e nada tem nada a ver com o trabalho de segurança. Ele quer fazer faculdade de educação física e abrir uma academia. “Se não der certo uma coisa, tem outra para onde correr, mas o que eu quero mesmo é atuar. Peguei amor por isso e agora quero ir até o fim”.
Kaique sabe bem o que é estar em cima e depois embaixo, e diz se lembrar de cada detalhe do trabalho com Walter Salles, quando tinha apenas 13 anos. "Linha de Passe" lhe proporcionou a primeira viagem de avião, a primeira vez visita a outro país [França, no Festival de Cannes] e a primeira vez que se viu na tela grande.
"Foi ali que eu pensei que queria fazer isso para o resto da minha vida, mas sempre tive em mente que não seria fácil. Meus pais me ajudaram muito e isso foi essencial para o tombo não ser feio", conta. O primeiro longa também lhe rendeu uma amizade com Sandra Corveloni, que interpretou a mãe dele no filme e pagou a Kaique o curso no Macunaíma.
Início por acaso
A carreira de ator começou por acaso. Ele frequentava na infância a Casa do Zezinho, uma ONG que fica perto da sua casa, quando a equipe da preparadora de elenco Fátima Toledo apareceu por lá atrás de "um garoto marrento e falante" para viver Reginaldo em "Linha de Passe". Apesar de não ter idade legal para isso, Kaique teve de aprender a dirigir um caminhão para uma das cenas.
"Eu era encrenqueiro naquela época. Isso que deu liga com o Reginaldo. A diferença é que a minha família tem muito mais estrutura que a dele”. Sua mãe de verdade, dona Marinalva, é linha dura e não desgrudou do rebento durante o primeiro trabalho no cinema.
Agora, em "Tudo que Aprendemos Juntos”, que ganhará uma sessão especial na Sala São Paulo no dia 3 de novembro, com participação da orquestra de Heliópolis, Kaique vive um jovem que aprende violino com Laerte (Lázaro Ramos). Em uma pílula do filme, divulgada em primeira mão pelo UOL, Lázaro diz na brincadeira que daria um safanão em Kaique. "Na época das filmagens, a mulher dele estava fazendo a empreguete [na novela ‘Cheias de Charme’, da TV Globo]. A gente ficava zoando ele. É um cara muito gente boa, muito humilde”.
Ainda há pouco espaço para atores negros na TV e cinema. Precisam de um motoboy? Branco. Surfista? Branco. Bandido? Aí é um preto né. Bastam 10 minutos de TV para perceber isso. É um preconceito que nem sei se um dia vai acabar
Kaique Jesus, ator
Com exibições do filme nos festivais de Locarno, na Suíça, e do Rio de Janeiro, Kaique terá de abandonar a guarita por algumas semanas até o final do ano. Além da Mostra, o filme já foi confirmado em festivais no Nordeste e foi vendido para mais de 11 países. A estreia em circuito comercial será no dia 3 de dezembro.
Kaique também faz uma ponta em "Se Deus Vier que Venha Armado", que estreia em dezembro, e está escalado para um filme norte-americano, "Moto Anjos", dirigido por Joe Tripician. Sobre esse projeto, ele diz que não sabe muita coisa, mas quer aproveitar a porta internacional para, "quem sabe, virar um Rodrigo Santoro da vida".
Além de continuar na carreira, ele sonha em servir como exemplo para outros jovens da periferia. "Muitos não acreditam que podem trabalhar como atores por serem da periferia. Mas eu posso ser exemplo para alguém. Isso vai valer mais do que qualquer fama".
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