Ode à solidariedade, "Perdido em Marte" encarna falácia da meritocracia
"Perdido em Marte", novo filme de Ridley Scott, que estreia nesta quinta (1º/10), é uma espécie de "Robinson Crusoé" para os tempos de conquista espacial. É o triunfo da força de vontade e da solidariedade diante das adversidades do mundo —embora esse mundo esteja em outro planeta.
Matt Damon (que já foi esquecido no espaço uma vez em "Interestelar") é Mark Watney, o personagem do triste destino dado no título, que é deixado para trás no Planeta Vermelho depois de dado como morto, quando sua equipe precisa ir embora às pressas.
Boa parte do filme acompanha o esforço de sobrevivência de Watney sozinho na vastidão deserta e seca —ele nem sabia que haveria água em algum lugar em Marte, conforme a Nasa anunciou esta semana—, tentando sobreviver e fazer contato com a Terra.
Muito ajuda o fato de ele ter um PhD em botânica e habilidades dignas de um MacGyver. Depois de se recuperar do ferimento que sofreu, contabiliza o quanto de suprimento alimentar ainda tem guardado, quanto tempo isso irá durar, e descobre como plantar batatas em Marte. Seus cálculos: conseguirá viver por quatro anos, até que o resgate chegue.
Como "Perdido em Marte" não é "Náufrago", o filme não acompanha apenas Damon deixado para trás. Na Terra, quando finalmente a Nasa descobre que o astronauta não está morto, começa uma mobilização para resolver como agir —até porque a opinião pública já está pressionando, e para todo o lado surgirão cartazes com "Tragam Watney de volta". A primeira medida é não avisar a tripulação da nave que abandonou o companheiro supostamente morto, para não atrapalhar a viagem deles.
Fica claro que a agência não tem o menor tato para lidar com o problema. A começar pela figura do seu superior, Teddy Sanders (Jeff Daniels), cujas atitudes fazem parecer que, por ele, não se contava nada a ninguém, deixando o homem abandonado morrer à míngua. Mas o chefe da missão, Venkat Kapoor (Chiwetel Ejiofor), e o responsável pelos astronautas, Mitch Henderson (Sean Bean), são mais humanitários e mobilizam o resgate.
Scott e seu roteirista Drew Goddard ("Guerra Mundial Z") valem-se de um estratagema que já existia no livro de Andy Weir: Watney grava vídeos para registrar sua experiência. Assim, o diretor encontra uma saída formal para explicar o que o protagonista faz e o porquê. Muito ajuda o fato de Damon ser carismático e usar bem o humor de seu personagem —do contrário, o filme resultaria numa enfadonha aula de ciência.
Em "Perdido em Marte", Scott está longe do estranhamento incômodo de "Alien" e dos questionamentos sobre a vida e afins de "Prometeus". É um filme de entretenimento, mas não mero. Com uma bela fotografia de Dariusz Wolski, que não se contenta em apenas explorar a paleta de cores quentes da atmosfera marciana, o cineasta faz um filme de aventura que traz em sua essência um questionamento político sobre solidariedade.
Quando a equipe de colegas de Watney, que o abandonaram, fica sabendo que está vivo, decidem voltar e resgatá-lo —seria mais rápido e menos oneroso do que mandar uma nova espaçonave. Capitaneados por Melissa Lewis (Jessica Chastain), não hesitam em fazer meia volta —se isso não é solidariedade entre os pares, o que será? Eles estão não apenas arriscando suas vidas (pode haver algum erro e não voltarem), como também aumentando o tempo longe da Terra —e já faz muitos meses que estão fora de casa.
A atitude desses personagens é a vitória da união de forças —mostrando uma falácia da meritocracia. Por mais que Watney se esforce para sobreviver —seu empenho pessoal é admirável—, ele jamais poderia sair dali sozinho. Seu afinco tem um limite: o da sobrevivência. A mudança radical de sua situação —voltar para a Terra— precisa de outras pessoas. "Perdido em Marte" não é o triunfo da vontade, é o triunfo da solidariedade —ao contrário do self-made man de "Robinson Crusoé", o que prova que a humanidade pode ter evoluído um pouco.
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