Essa mania de fazer listas de melhores não é nova para quem gosta de cinema e música. Os principais veículos de comunicação, especializados ou não, fazem a sua assim que acaba o ano. Nós aqui do UOL Cinema também fizemos a nossa, com os melhores filmes lançados em São Paulo no ano passado - na nossa modesta opinião. E convidamos você a fazer a sua, com justificativa ou não, para que possamos compará-las. Afinal, os filmes servem para isso mesmo, estimular a nossa percepção do mundo, embarcar na imaginação e também discutir sobre eles.
É quase impossível classificar Woody Allen em uma categoria. Isso seria mais ou menos como aprisioná-lo a um rótulo que sua carreira e obra se encarregariam de derrubar com facilidade. No entanto, há traços que se destacam na trajetória do cineasta e um dos mais evidentes é o gosto por personagens femininas fortes. "Vicky Cristina Barcelona" fala antes de tudo sobre a mulher. Nos personagens de Rebecca Hall, Scarlett Johansson e Penélope Cruz estão expostas várias facetas do arquétipo feminino, sem com isso parecer esquemático demais. E Javier Bardem, com sua persona direta, objetiva e pragmática, representa o homem no que tem de mais primal. Depois de "Scoop" e "O Sonho de Cassandra", dois filmes que não aconteceram, o diretor volta a sua melhor forma. Por tudo isso, foi o melhor do ano.
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Antes que o Diabo Saiba Que Você Está Morto
Com uma produção prolífica dividida preferencialmente entre a televisão e o cinema, Sidney Lumet não prima pela constância. É inegável, no entanto, um traço de excelência técnica e a escolha de temas relevantes em seus trabalhos. "Antes Que o Diabo Saiba Que Você Está Morto" está entre seus grandes momentos, aqueles em que suas habilidades e a estrela dos atores com quem trabalha entram em conjunção. Novamente, a família está no centro da trama. Desta vez a de dois irmãos em dificuldades financeiras, personagens de Phillip Seymour Hoffman e Ethan Hawke, que decidem dar um golpe nos próprios pais e acabam se dando muito mal. Uma tragédia shakespeareana moderna que também fala muito sobre um estado de coisas caótico, sem ética e cavalheirismo, que rege a vida nas sociedades modernas. A barbárie, parece dizer Lumet, chegou à civilização.
O diretor tunisiano radicado na França Abdellatif Kechiche volta ao tema das diferenças e da xenofobia na França, agora sob a perspectiva de um velho trabalhador árabe que é despedido do emprego no cais do porto de Marselha. Para continuar trabalhando, ele decide abrir um restaurante especializado em cuscuz dentro de uma embarcação abandonada. Com a ajuda da ex-mulher, dos filhos, da enteada e de um grupo de amigos musicos, ele vai à luta. E de uma forma ou de outra vence todos os obstáculos, emocionais, burocráticos e de outras ordens que se colocam em seu caminho. Kechiche não está interessado apenas nas intrigas familiares envolvendo a ex-mulher e a atual amante, dona da pensão onde ele vive. O cineasta mostra como é possível para o ser humano se reinventar sempre, independente de sua condição de estrangeiro.
Como tantas famílias carentes brasileiras, a de "Linha de Passe" tem a fragmentação como principal característica. Não surpreende, portanto, que o filme de Walter Salles penda um pouco para esse lado, o que pode ou não visto como falha. Discussão inócua, já que a questão central do filme, mais importante e urgente, é outra: a ausência crônica do pai. Salles transforma essa família em um espelho da vida brasileira, com jovens que se lançam ao esporte e à religião com a mesma intensidade, na esperança de tirarem a sorte grande e obterem recompensa material ou espiritual. O elenco funciona de forma orgânica, como se estivessem mesmo vivendo aquela realidade. Mas é a mãe solteira, que leva com mão de ferro os filhos, quem dá o tom. A atriz Sandra Corveloni conquistou a Palma de Ouro de melhor interpretação feminina no Festival de Cannes em maio de 2008. Foi um prêmio simbólico, até as palmeiras da Croisette sabem disso. Mas ficou em ótimas mãos.
Aqui está um exemplo de que o cinema industrial e o sistema de estúdios americanos, com força nos produtores, ainda não morreram completamente e nem perderam força. Foi o produtor Scott Rudin quem comprou os direitos de adaptação de "Onde os Velhos Não Têm Vez" do escritor Cormac McCarthy e procurou Joel e Ethan Coen para lhes oferecer o projeto. Os irmãos-diretores passaram feito um trator pela fama de "difícil" de McCarthy e transformaram o romance dele em um contundente estudo sobre a banalização da violência no mundo contemporâneo. Com isso, tiraram dos filmes sobre a Segunda Guerra e a ascenção e queda do nazismo o privilégio de discorrer sobre o tema. Além disso, colocaram o foco da discussão atual na ferida certa, os Estados Unidos e a guinada à direita no país. Essa tendência, no filme, é representada pelo estranho Chigurh, um assassino de aluguel contratado por traficantes mexicanos para reaver uma quantia considerável de dinheiro roubada na fronteira com o estado do Texas. Ele persegue o caubói Llewelyn (Josh Brolin) enquanto é perseguido pelo xerife Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones), peças de um quebra-cabeças intrincado que diz muito a respeito da América como a conhecemos hoje.
Há anos o faroeste vem sendo revisitado pelos cineastas americanos. E em quase todas as ocasiões recentes em que isso aconteceu o que se fala sempre é que o diretor tal "renovou o gênero". Ed Harris, que estreou na direção com a boa cinebiografia "Pollock" (2000), volta à função justamente com um faroeste. "Appaloosa - Uma Cidade Sem Lei" não renova o gênero como se disse em mais de uma ocasião e por diferentes críticos. Apenas resgata os clichês criados por Howard Hawks, John Ford, Fred Zinnemann e Nicholas Ray para falar de valores que foram banalizados pela vida moderna e se perderam na correria do cotidiano. Entre os quais, um certo cavalheirismo, lealdade, ética e vários outros. Este é o maior valor da história protagonizada pelo próprio Harris, pelo ótimo Viggo Mortensen e por uma Renée Zellwegger em estado de graça.
Vizinha do Ministro da Defesa de Israel, uma viúva palestina, interpretada por Hiam Abbass, decide processá-lo por cortar os limoeiros do terreno de sua casa. A justificativa dada pelo governo israelense para a poda é de que se trata de Segurança Nacional. O cineasta Eran Riklis poderia ficar na superfície da trama, mas vai muito além disso. Na verdade, a questão que surge dessa rusga aparentemente sem importância reverbera tanto nas relações pessoais da mulher palestina quanto no quintal de seu ilustre vizinho. Um filme para se ver e rever com atenção, especialmente nos dias de hoje.
"Sangue Negro", de Paul Thomas Anderson, desafia os mitos fundadores da América na figura ao mesmo abjeta de Daniel Plainview. O personagem, excelente composição Daniel Day Lewis, percorre o meio-Oeste americano com seu filho pequeno a tiracolo em busca de terras para perfurar. Com uma conversa que se assemelha a uma predica religiosa, ele convence as famílias de que as pagará, mas encontra petróleo e nunca lhes dá dinheiro. Em sua trajetória, encontra todo tipo de trapaceiros e passa por tragédias pessoais. Ao invés de se humanizar, só engrossa o couro e se distancia da realidade. Anderson, que se consagrou como diretor de filmes independentes como "Boogie Nights" (1997), "Magnólia" (1999) e "Embriagado de Amor" (2002), volta a transgredir.
Cristian Mungiu faz parte da geração que testemunhou a transição entre a ditadura totalitarista e a democracia na Romênia. "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias" expõe algumas das histórias que o diretor viu acontecerem ou ouviu falar. E o modo como as reproduz no filme impressiona pela economia de meios, pela beleza das imagens e pelo empenho das duas intérpretes. Elas fazem os papéis de duas amigas que cruzam a capital para encontrar um aborteiro que as chantageia - naquele contexto, era crime grave a pratica do aborto.
A direção econômica de Julian Schnabel e a soberba interpretação de Mathieu Amalric transformaram "O Escafandro e a Borboleta" em um cult instantâneo. No filme, Amalric encarna o jornalista francês Jean-Dominique Bauby, editor da revista feminina de moda e comportamento "Elle". Em 1995, Bauby sofreu um derrame que lhe causou uma condição rara: o travamento completo do corpo, a não ser pela pálpebra direita. Com a ajuda de um código complexo, ele conseguiu editar um livro sobre essa experiência permanente e curta. Bauby morreu pouco tempo depois do livro pronto.