Entre os grandes filmes que estrearam no Brasil em 2008, alguns são oriundos do ano anterior e quase todos de diretores consagrados, o que não constitui grande surpresa serem os melhores. É o caso, por exemplo, de "Onde os Fracos Não Têm Vez" e "Sangue Negro", dois destaques do cinema americano em 2007. Não por acaso, ambos têm a ver com as conseqüências de um sistema capitalista pouco ou nada humanista. "Vicky Cristina Barcelona", mais uma realização "européia" de Woody Allen, compõe o quadro com uma radiografia da alma feminina como há muito não se via no cinema. E no Brasil, Walter Salles se destaca no cenário com "Linha de Passe", mosaico familiar que representa o país nas suas entranhas.
É quase impossível classificar Woody Allen em uma categoria. Isso seria mais ou menos como aprisioná-lo a um rótulo que sua carreira e obra se encarregariam de derrubar com facilidade. No entanto, há traços que se destacam na trajetória do cineasta e um dos mais evidentes é o gosto por personagens femininas fortes. "Vicky Cristina Barcelona" fala antes de tudo sobre a mulher. Nos personagens de Rebecca Hall, Scarlett Johansson e Penélope Cruz estão expostas várias facetas do arquétipo feminino, sem com isso parecer esquemático demais. E Javier Bardem, com sua persona direta, objetiva e pragmática, representa o homem no que tem de mais primal. Depois de "Scoop" e "O Sonho de Cassandra", dois filmes que não aconteceram, o diretor volta a sua melhor forma. E está entre os melhores do ano, se não for o melhor.
Aqui está um exemplo de que o cinema industrial e o sistema de estúdios americanos, com força nos produtores, ainda não morreram completamente e nem perderam força. Foi o produtor Scott Rudin quem comprou os direitos de adaptação de "Onde os Velhos Não Têm Vez" do escritor Cormac McCarthy e procurou Joel e Ethan Coen para lhes oferecer o projeto. Os irmãos-diretores passaram feito um trator pela fama de "difícil" de McCarthy e transformaram o romance dele em um contundente estudo sobre a banalização da violência no mundo contemporâneo. Com isso, tiraram dos filmes sobre a Segunda Guerra e a ascenção e queda do nazismo o privilégio de discorrer sobre o tema. Além disso, colocaram o foco da discussão atual na ferida certa, os Estados Unidos e a guinada à direita que se transformou em tendenência no país há mais de uma década. Essa tendência, no filme, é representada pelo estranho Chigurh, um assassino de aluguel contratado por traficantes mexicanos para reaver uma quantia considerável de dinheiro roubada na fronteira com o estado do Texas. Ele persegue o caubói Llewelyn (Josh Brolin) enquanto é perseguido pelo xerife Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones), peças de um quebra-cabeças intrincado que diz muito a respeito da América como a conhecemos hoje.
Diretor independente consagrado por filmes como "Boogie Nights" (1997), "Magnólia" (1999) e "Embriagado de Amor" (2002), Paul Thomas Anderson conquista a maioridade profissional com (...) "Sangue Negro". Livremente inspirado na trama do livro "Oil", de Upton Sinclair, o enredo desenvolve a história do empreendedor Daniel Plainview (Day-Lewis). (...) Seu mergulho nos mitos fundadores da América, aliás, cria possibilidades de um paralelo com o presente. O petróleo que no início do século 20 jorrava na Califórnia, bem como no Texas, agora jorra no Iraque, em todos esses lugares misturado com o sangue dos homens obcecados por delírios de poder e riqueza. (Neusa Barbosa)
Como tantas famílias carentes brasileiras, a de "Linha de Passe" tem a fragmentação como principal característica. Não surpreende, portanto, que o filme de Walter Salles penda um pouco para esse lado, o que pode ou não visto como falha por alguns críticos. Discussão inócua, já que a questão central do filme, mais importante e urgente, é outra: a ausência crônica do pai. Salles transforma a família do filme em um espelho da vida brasileira, com jovens que se lançam ao esporte e à religião com a mesma intensidade, na esperança de tirarem a sorte grande e obterem recompensa material ou espiritual. Como a mãe solteira que leva com mão de ferro os quatro filhos, Sandra Corveloni conquistou a Palma de Ouro de melhor interpretação feminina no último Festival de Cannes. Foi um prêmio simbólico, até as palmeiras da Croisette sabem disso. Mas ficou em ótimas mãos.