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30/01/2009 - 07h00

Diretor fala sobre 'Entre os Muros', filme indicado ao Oscar que retrata nova sociedade francesa

TAÍSSA STIVANIN
Colaboração para o UOL, de Paris
Manhã chuvosa, dia típico de inverno em Paris. A entrevista do UOL com o diretor francês Laurent Cantet, agendada há um mês, está marcada em um café no centro da capital. A data não poderia ser mais oportuna: na véspera, dia 22 de janeiro, a Academia de Artes Cinematográficas de Hollywood confirmou a indicação de "Entre os Muros da Escola" na categoria de Oscar de melhor filme estrangeiro - o último filme francês indicado foi "Feliz Natal" (2005), de Christian Carion.

Divulgação
O diretor Laurent Cantet (de camisa preta à direita) conversa com atores de "Entre os Muros da Escola", indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro
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"Entre os Muros da Escola" coleciona prêmios. Já levou Palma de Ouro no Festival de Cannes e disputa o César de melhor filme do ano. Baseado no livro homônimo de François Bégaudeau, que será lançado no Brasil pela editora Martins Fontes, o filme retrata o cotidiano de uma classe de oitava série em uma escola pública do subúrbio parisiense.

Bégaudeau, professor de francês na vida real, também é o ator principal do filme. Os alunos foram selecionados em ateliês de improvisação realizados pelo diretor no colégio Françoise Dolto, onde também aconteceu a filmagem. O resultado: um retrato da nova sociedade francesa, onde miscigenação, desigualdade social e choque cultural confrontam os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Bem vindos à França, onde a Torre Eiffel é só uma imagem de cartão postal.

Em tempo: a distribuidora brasileira do filme, Imovision, deve trazer Cantet e Bégaudeau para o lançamento do filme em São Paulo, no dia 13 de março.

UOL - Qual o significado para você desta indicação ao Oscar?
Laurent Cantet - O filme teve um grande reconhecimento do público no mundo todo, mas foi feito de uma maneira diferente do modo habitual de produção, com atores que não eram profissionais, uma grande liberdade no roteiro, com um orçamento restrito ["Entre os Muros da Escola" custou cerca de 2,5 milhões de euros]. Não é muito para um filme que depois fez sucesso em vários países. Isso me conforta. Significa que há várias maneiras de se pensar o cinema.

UOL - Como foi a filmagem?
Cantet - Durante todo o ano escolar, entre 2006 e 2007, houve ateliês de improvisação na escola Françoise Dolto, às quartas-feiras após o almoço. Nós improvisávamos, testávamos situações, recuperávamos aquilo que eles diziam de verdade e trechos de diálogos para inserir no roteiro. O que significa que a partir do momento em que damos um sentido à aquilo que os adolescentes fazem, eles são capazes de se concentrar e de se esforçar de uma maneira que não podemos nem imaginar.

UOL - Como os alunos do filme lidam com essa fama repentina?
Cantet - Muito bem. Foi uma de nossas maiores preocupações, principalmente depois do Festival de Cannes, que teve uma grande repercussão. Eles foram perseguidos pelas câmeras na escola, na casa deles... Nós conseguimos protegê-los de alguns jornalistas que começaram a segui-los para ver o que iriam fazer nas férias, por exemplo. Por outro lado, eles mesmos não estavam interessados, o grupo é muito sólido. Eles não davam entrevistas, ou pediam para ligar para o assessor de imprensa. Em nenhum momento um tentou passar por cima do outro. Eles são muito unidos, e o filme foi feito com esse espírito.

UOL - No momento da filmagem, todos os personagens já faziam parte do roteiro?
Cantet - Alguns já estavam pré-estabelecidos e outros foram adaptados em função da personalidade de cada um. Outros personagens nasceram dos atores que eles encarnaram. Esses ateliês permitiram que a gente aprendesse a se conhecer melhor. O resultado é uma retroalimentação entre o trabalho escrito e aquilo que eles propunham. Alguns personagens foram integrados ao roteiro... Um dos exemplo é Wei, o aluno chinês. No roteiro tínhamos um menino chinês, filho de imigrantes clandestinos, mas que era tímido, tinha medo de abrir a boca e errar, e não falava nada do começo ao fim do filme. Então encontramos Wei, que adora falar e mesmo se comete alguns erros em francês, não tem problema. Wei adora conversar. Não iríamos pedir para ele ficar quieto, aceitamos Wei do jeito que era e como vocês vêem no filme.

UOL - Esmeralda é um personagem escrito?
Cantet - Sim, tínhamos um personagem parecido com ela. Havia a preocupação de criar uma classe com todos seus arquétipos: o vagabundo, o engraçadinho, o respondão, o líder, o roteiro estava baseado nesta tipologia. Depois foi preciso 'alimentar' esse personagem da Esmeralda, para ele se tornar o que se tornou. Nós a encontramos no primeiro ateliê, quando saímos, eu e François [François Bégaudeau, autor do livro], falamos um para o outro: Temos nossa estrela! [Cantet evita elogiar demais para não causar ciúmes nos outros alunos].

UOL - Como está a venda do filme? Antes mesmo de Cannes, já havia 43 países interessados.
Cantet - Hoje, segundo nossas projeções de mercado, já existem cerca de 60 países interessados na compra do filme. Todos os países europeus, Canadá e Estados Unidos, Brasil, Argentina, China e México na América Latina, Austrália, onde o filme entra em cartaz nesta semana, Índia...

UOL - Como as pessoas compreendem o filme? É difícil de entender a história sem conhecer um pouco a sociedade francesa atual.
Cantet - Realizamos debates em vários países. As questões formuladas por jornalistas, ou professores, são as mesmas da França. O tema abordado é universal, mesmo que haja problemas específicos do sistema escolar francês. Mas a questão central é compreendida da mesma forma aqui ou em outros países.

UOL - Assistindo ao filme na versão original, parece complicado traduzir todas as gírias e expressões em várias línguas...
Cantet - Isso foi um longo trabalho. Cuidamos da versão em inglês para o Festival de Cannes, e o tradutor pesquisou muito para encontrar palavras e expressões equivalentes. Não é uma tradução, na verdade. Somos obrigados a reescrever o texto para encontrar fórmulas com o mesmo sentido, que causem o mesmo efeito, nível de linguagem, o mesmo tipo de registro. Este trabalho foi muito longo, do qual eu participei, fazendo perguntas e sugestões ao tradutor. O que me tranqüiliza, agora que já assisti a várias projeções em diferentes línguas, é que as pessoas riem nos mesmos momentos do que os franceses, o que me leva a crer que as legendas funcionam.

UOL - É um filme sobre educação?
Cantet - Não, ele vai além disso. Atravessamos os muros da escola para falar da sociedade nos dias de hoje, das relações humanas, da noção de autoridade, não só através da figura do professor, e de como as pessoas se colocam diante dessa autoridade. O filme também aborda o fato de pertencer a uma comunidade. O que isso significa? Como crescemos? Como transitamos entre tantas culturas diferentes? São questões que não fazem parte apenas do universo escolar, apenas um microcosmo num contexto maior.

UOL - Houve reação da parte dos professores?
Cantet - Sim, muitos se identificaram com o filme, com os problemas. Ao mesmo tempo, as piores críticas também vieram dos professores. Alguns disseram que criamos uma imagem pessimista demais para a escola. Eu acho o contrário: a imagem é otimista e alegre, mesmo se trata de questões às vezes trágicas. Em todo o caso, tentamos abordar o tema de maneira suficientemente complexa para que o filme não aborde apenas o lado ruim da escola. Também acho que os adolescentes sempre acabam surpreendendo em algum momento.

UOL - Como quando Esmeralda disse ter lido 'A República', de Platão...
Cantet - Por exemplo. Alguns professores ficaram com medo da imagem que reproduzimos da escola, e não se identificaram com François, muito desajeitado, alguém que comete muitos erros, o que faz parte do cenário original. Por isso é importante diferenciar um documentário de uma ficção: criamos o personagem dessa maneira porque precisávamos que ele fosse dessa maneira. E também porque acredito que é preciso criar personagens que representem seres humanos com suas fraquezas. Não tinha a menor vontade de criar um personagem, professor, que fosse um exemplo de cultura, que tivesse sempre a boa reação, encontrasse sempre o bom exemplo. O erro existe; talvez em relação a um professor seja mais sério do que em outras profissões, mas é assim. O que não devemos dizer é o que acabamos dizendo. Algumas cenas, inspiradas no livro, aconteceram mesmo.

UOL - Você se identifica com um dos alunos do filme?
Cantet - Não, eu era mais tranquilo. Curioso, mas tranquilo. A escola também era muito diferente, no interior [Cantet nasceu em Melle, no sudoeste da França], num meio bem mais homogêneo. Na época, o sistema também era outro, não havia toda essa diversidade.

UOL - Os alunos vão para Los Angeles?
Cantet - Só tenho direito a dois lugares no teatro. Oscar de melhor filme estrangeiro não é tão badalado assim...

UOL - Já teve tempo para pensar em um novo projeto?
Cantet - Não. Estou precisando de tempo... Mas tenho a impressão de que encontrei um método de trabalho com esse filme, essa liberdade, e isso é o que é mais importante para mim agora.

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