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Ficha completa do filme

Drama

A Via Láctea (2007)

Rubens Ewald Filho

Rubens Ewald Filho

Especial para o UOL Cinema
Nota: 5

Este é um dos filmes mais ousados e anticatólicos de Buñuel (1900-83). Depois de "A Bela da Tarde" (Belle de Jour, 1967), o diretor ameaçou abandonar o cinema, mas retornou com esta obra conhecida no Brasil como "O Estranho Caminho de São Thiago".

São dois peregrinos que fazem uma viagem até Santiago de Compostela, na Espanha, localidade cujo nome vem da expressão latina "Campus Stella", ou seja, Via Láctea ou Caminho das Estrelas.

Trata-se de um passeio pelas heresias da História, testamento de um espanhol ateu que nunca conseguiu se livrar da superestrutura da Igreja. Ele e o roteirista Jean- Claude Carrière pesquisaram tudo que se referia as heresias e comprimiram a história de dois mil anos em dezenove seqüências.

Os dois mendigos (Paul e Laurent) encontram os mais estranhos personagens, todos discutindo problemas e falando frases rigorosamente autênticas, retiradas de livros da época.

O filme mostra as seis mais importantes heresias: Cristo ao mesmo tempo como Homem e Deus, a Santíssima Trindade, a transubstanciação, a Imaculada Conceição, a sabedoria e onipresença de Deus e as origens do Diabo.

A ironia de Buñuel surge em piadas das Bodas da Canaã e no uso de barba somente porque barba "inspira confiança". O efeito é salutarmente cômico, quase surrealista. Sem mais nem menos, se discutem heresias da forma mais engraçada possível.

Essa velha fobia anti-clerical só se torna aceitável pelas mãos de um homem como ele, que em toda sua vida combateu os absurdos do catolicismo, sem nunca conseguir libertar-se de suas marcas.

O maior problema é a dificuldade de identificar personagens e símbolos. O espectador não tem obrigação de saber todas as heresias para identificar quem é quem.

O mais facilmente reconhecível é o Marques de Sade (Piccoli) que parece ter se absolvido de suas práticas sexuais heterodoxas diante de uma mulher que histericamente afirmava a existência de Deus. Responde Sade: "Se Deus existe, eu o detesto".

A peregrinação começa com um encontro com um desconhecido (Cuny), que dá uma esmola ao menos pobre dos dois. "Porque somente quem tem fé tem direito a tudo" diz ele, e faz também uma profecia: "terás o filho de uma prostituta", utilizando as mesmas palavras destinadas por Deus ao profeta Oséias. Esta prostituta (Seyrig) surge no final e Buñuel sugere que ela talvez seja um anjo.

Depois a Transubstanciação é defendida por um padre saído de asilo de loucos que conclui que "Deus está para a hóstia, assim como o carneiro está para o patê de Carneiro". Enquanto que a dupla natureza de Cristo é debatida entre garçom e maitre de um restaurante.

A origem do diabo se revela numa orgia em que o Bispo de Ávila põe em prática sua tese de que se deve tirar o mal do corpo através dos excessos sexuais. O Livre Arbítrio serve de tema para um duelo entre um Jansenista e um jesuíta, que no fim saem de braços dados. Enquanto numa capela próxima, uma freira se crucifica.

A Santíssima trindade é criticada por um bispo que profana um túmulo. A Imaculada Conceição é abordada numa cena em que um casal se tranca no quarto enquanto um padre começa a falar sobre sexo e casamento, conseguindo finalmente inibir o casal. Buñuel mostra o padre dentro do ninho do casal para provar que a Igreja está sempre interferindo nas relações de alcova.

A mais importante de todas as conclusões é de Cristo que anuncia que veio a Terra não para trazer a paz, mas a Espada. Mais tarde ele faz um milagre, para que dois cegos voltem a ver. Quando Jesus e os discípulos pulam uma vala, a câmera mostra os dois cegos examinando as valas com suas bengalas. Apesar de terem recobrado a visão, eles conservam o velho hábito da bengala. O homem é moralmente cego, quer dizer Buñuel, e sua única saída é sua liberdade espiritual.

Quando os peregrinos chegam à Santiago descobrem que há suspeitas de que quem está enterrado lá é um prisciliano. Assim, todas as peregrinações e milagres, nunca tiveram sentido. Então, "meu ódio pela ciência e a tecnologia, talvez me faça cair no absurdo de cair de acreditar em Deus", diz ele.

É o filme de contestador que faz brincadeiras à maneira de Godard e defende suas idéias, as mesmas do inicio de sua carreira, até o fim. Ainda que quadrado em matéria de linguagem, Buñuel é um grande 'show-man'. Mesmo que não se entenda os detalhes do filme, é uma brilhante e instigante diversão, provando que idade é uma coisa muito relativa.

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