O Caso dos Irmãos Naves (1967)

Márcio Ferrari

Colaboração para o UOL 23/04/2010

Nota: 4

Os irmãos Sebastião e Joaquim Naves, moradores da cidade de Araguari, em Minas Gerais, foram vítimas na primeira metade do século 20 de um famoso caso de erro judicial, que só veio a ser demonstrado cerca de duas décadas depois da prisão dos dois. Submetidos a tortura sistemática por um tenente que se torna delegado (Anselmo Duarte), eles confessaram um latrocínio que não cometeram e foram condenados a 25 anos e meio de reclusão, mesmo sem que a polícia tivesse encontrado o suposto cadáver, nem o suposto dinheiro roubado. O inquérito e o julgamento ocorreram entre 1937 e 1939, anos iniciais do Estado Novo getulista (presente na provocativa aparição de uma prensa que imprime um jornal com a manchete ?O novo estado brasileiro é uma democracia autoritária?).

O roteiro, escrito pelo diretor Luis Sergio Person (1936-1976) e pelo crítico Jean Claude Bernardet, se baseia num relato do caso publicado em livro pelo advogado dos irmãos, João Alamy Filho. Certamente os elementos de violência, repressão e arbitrariedade presentes no caso dos irmãos Naves levaram os roteiristas a conscientemente evocar paralelos com a ditadura vigente no período de produção do filme, lançado três anos depois do golpe militar de 1964.

No entanto, a cautela com que os letreiros iniciais anunciam que o filme ''atém-se ao processo judiciário e aos fatos que o cercam'' não parece ser uma mera medida de precaução contra a censura ou outras complicações, mas um esclarecimento de que o filme tratará, em grande parte, das instituições: o papel da polícia e da Justiça num estado sustentado pelo dinheiro da população e que, portanto, teria obrigação de ser democrático.

Person, que havia estudado no Centro Sperimentale de Cinematografia de Roma e realizado o igualmente clássico ''São Paulo, Sociedade Anônima'' (1965), adotou procedimentos do neorrealismo, sobretudo o uso de atores não profissionais (escolhidos entre a população de Araguari) em diversos papeis importantes. Nos papeis principais estão três atores ''de teatro'', Juca de Oliveira, Raul Cortez e Lelia Abramo (como a mãe dos Naves). O excelente desempenho desses profissionais cria um contraste estimulante com a representação nada canônica dos ''amadores''. Outra linha de tensão brota da relação entre um roteiro com tempos irregulares e uma montagem vigorosamente ritmada.

''O Caso dos Irmãos Naves'' é um dos grandes momentos do cinema brasileiro num período em que uma realidade brutal e súbita impôs a necessidade de abordar novos assuntos e, principalmente, de buscar novas formas de filmar. Dois exemplos do triunfo do filme: Person, ao que parece inspirado no cinema japonês, encontra soluções terrivelmente belas para as cenas de violência e consegue dar conta de grande parte das questões econômicas envolvidas na trama numa única sequência de diálogo entre Sebastião Naves e um cunhado sitiante.

O DVD, infelizmente, não traz mais nada sobre o filme, mas apresenta uma raridade, ''Al Ladro'' (pega ladrão), belo curta que Person dirigiu em parceria com o italiano Claudio Rispoli em seus tempos de estudante em Roma.