O cineasta Julian Schnabel e a jornalista e escritora palestina Rula Jebreal posam em sessão de fotos de "Miral", filme exibido no Festival de Veneza (2/09/2010)
A política do Oriente Médio entrou na pauta neste segundo dia do Festival de Veneza, com a passagem do drama “Miral”, concorrente ao Leão de Ouro. Dirigido pelo cineasta norte-americano Julian Schnabel (“O Escafandro e a Borboleta”), esta coprodução entre EUA, Israel, França e Itália botou o dedo na ferida do interminável conflito entre judeus e palestinos ao criticar o não-cumprimento de um acordo em Oslo, em 1993, que previa a criação de um Estado palestino – o que, como lembram os créditos finais, não foi cumprido até hoje.
Fazendo parte da comunidade judaico-americana, como frisou na concorrida coletiva desta tarde de quinta, Schnabel destacou que seu interesse ao filmar esta espécie de cinebiografia da pioneira palestina da educação, Hind Husseini (Hiam Abbas), é apenas um: “Este conflito (entre árabes e judeus) tem que acabar. Qualquer razão para isso não é boa o bastante”.
A repercussão de “Miral” lembra, em termos temáticos, a edição 2009 do Festival de Veneza, em que o Leão de Ouro acabou nas mãos do israelense Samuel Maoz, por outro drama sobre um episódio da guerra no Oriente Médio, “Lebanon” – ainda inédito no circuito comercial brasileiro.
Vítimas femininas
Indagado porque hoje em dia estúdios e diretores tentam evitar filmes políticos, o cineasta respondeu: “Não sei. Porque acho que tudo o que fazemos é político. O jornal ‘The New York Times’ tem uma seção que se chama ‘Arte e Lazer’. Não sei o que uma coisa tem a ver com a outra. Faço filmes que são entretenimento mas a razão para realizá-los é porque sinto responsabilidade em relação ao que filmo”.
Ao seu lado, a roteirista e escritora palestina Rula Jebreal – que trata aqui da própria história e de sua relação com Hind Husseini, de quem foi aluna, tudo isso objeto de um livro – fez questão de especificar a questão feminina nas guerras. “As primeiras vítimas de todos os conflitos são sempre as mulheres e as crianças. Isto acontece não só na Palestina. Vejam o caso dos estupros étnicos nos Bálcãs”, acusou.
Intérprete de Hind, a atriz israelense de origem palestina Hiam Abbas, também elevou o tom ao comentar que, atualmente, “muitos jornalistas perguntam se sou uma atriz engajada. Não sei porque alguns parecem pensar que isso se tornou negativo. Eu não. Esta mulher (Hind Husseini) decidiu mudar a face da História com o que fez”.
O produtor Tarak Ben Ammar – o grande financiador do filme, segundo Schnabel -, por sua vez, destacou: “Não queremos dar lições aos políticos, mas gostaria muito que (Barack) Obama e (Beniamin) Netanyahu tivessem assistido ao filme”.
O produtor se irritou, porém, quando um jornalista questionou o fato de os personagens, tanto árabes quanto israelenses, de “Miral”, falarem quase sempre inglês. “Você assistiu ‘Amadeus?’. O personagem não é alemão? Mas é falado em inglês e isso não te incomodou. Você assistiu ‘Gandhi?’O personagem é indiano, mas o filme é falado em inglês. Da mesma forma, o nosso, porque queremos que o filme seja visto em todo o mundo”. O diretor Schnabel, por sua vez, opinou que “em Israel, todos, israelenses e árabes, falam inglês”.
Amores em Tóquio
O diretor vietnamita Tran Anh Hung (“O Cheiro da Papaia Verde”) teve que atropelar uma qualificada concorrência – como a do famoso ator chinês Tony Leung (“Desejo e Perigo”) – para obter do escritor japonês Haruki Murakami permissão para adaptar seu romance “Norwegian Wood”. Bestseller no Japão, o livro rendeu na tela um drama romântico de alta voltagem erótica e psicológica, também concorrente ao Leão de Ouro.
A atriz Rinko Kikuchi participa do Festival de Veneza com o filme ''Norwegian Wood'' (2/09/2010)
Na coletiva de “Norwegian Wood”, o diretor e o produtor executivo, Shinji Ogawa, contaram que, desde o primeiro contato com Murakami, o escritor apenas deixou claro que não abriria mão de um diretor asiático, pois entendia que um ocidental não conseguiria, aseu ver, ser fiel ao clima da história. Afinal, ele não revelou as razões de sua escolha. “Ele apenas me aceitou, não disse porquê”, disse Hung. Depois dessa aceitação, o autor apenas exigiu do cineasta ler a primeira versão do roteiro. Fez várias anotações, pediu algumas mudanças e depois deu carta branca. “Faça o filme mais belo possível”, teria dito a Hung.
Ambientado nos anos 60, o enredo gira em torno dos desejos mútuos e, às vezes, conflitantes de vários jovens, Watanabe (Kenichi Matsuyama), Naoko (Rinko Kikuchi, de “Babel”), Midori (Kiko Mizuhara), Nagasawa (Tetsuji Tamayama) e Hatsumi (Eriko Hatsune).
A famosa canção dos Beatles que empresta o nome ao romance e ao filme quase não foi utilizada. O produtor Ogawa contou que, quase até o final da produção, o diretor “não tinha certeza” de que usaria realmente a música. Quando decidiu, os produtores se empenharam numa negociação demorada, mas, afinal, obtiveram a autorização. A versão dos Beatles só é ouvida uma única vez, na subida dos créditos finais. Antes disso, numa única cena, uma das atrizes canta um trecho.
Loucura, Itália, anos 60
O primeiro concorrente italiano, “La Pecora Nera”,de Ascanio Celestini (cineasta e ator, além de autor do romance homônimo), revisitou igualmente os anos 60 e o tema da loucura, que atravessa o filme japonês “Norwegian Wood”, especialmente a personagem Naoko. Mas o tom da produção italiana é, além de muito diferente, um tanto artificial e decepcionante.
O cenário principal de “La Pecora Nera” é um manicômio no interior, em que o interno Nicola (Ascanio Celestini) desfruta de um status privilegiado. Ele ajuda nas tarefas de servir comida e mesmo remédios aos demais pacientes e acompanha a freira que dirige a instituição às compras de supermercado.
A história é retratada pelo olhar de Nicola, que pensa frequentemente na infância, quando começou a viver no manicômio – onde antes morrera sua mãe. Ele acaba confinado ali menos por seu comportamente excêntrico e bem mais pela crueldade e o abandono do pai e dos irmãos maiores, além da incapacidade da avó de cuidar dele.
A única relação afetiva de Nicola é com Marinella (Maya Sansa, de “Bom dia, noite”), uma colega de escola que se tornou atendente de um quiosque de café no mercado. Mas mesmo esta amizade só acentua a inadequação de Nicola.