Filme "Lira Paulistana" radiografa teatro berço da vanguarda paulista
Durante um tempo, entre 1979 e 1986, havia um lugar especial para se estar na cidade de São Paulo: um porão velho e barulhento na rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros, alugado por uma viúva a um grupo de "agitadores culturais". O local, antigo depósito de ferragens, abrigava o teatro Lira Paulistana, uma casa de shows para 250 pessoas montada em formato de teatro de arena.
Em questão de meses, o diminuto espaço passou a lotar de quarta-feira a domingo, tornando-se epicentro de uma nova geração de bandas e músicos, mais experimental, liberta dos ranços comerciais. O movimento ganhou um nome ("vanguarda paulista") e um messias (Itamar Assumpção), e formatou o que hoje é conhecido como "disco independente" no Brasil.
Essa história, repleta de figuras importantes, mas desconhecida por grande parte do público, é o tema do documentário "Lira Paulistana", dirigido por Riba Castro, que estreia nesta sexta-feira (15) em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, simultaneamente no cinema, em DVD e em versão online.
Montado a partir de imagens de arquivo e entrevistas inéditas com músicos, produtores e jornalistas, o documentário é um testemunho da talvez mais silenciosa revolução da música brasileira. Movimento que abarcou também uma editora, um jornal semanal de cultura (precursor da "Veja SP"), uma produtora de shows e uma gravadora.
O músico Itamar Assumpção, morto em 2003
Do selo Lira Paulistana saíram os primeiros discos de bandas, como Premeditando O Breque, Língua de Trapo e Rumo. Entre eles veio "Beleléu, Leléu, Eu" (1980), estreia de Itamar com a banda Isca de Polícia, espécie de "Sgt. Peppers" da era. E foi o próprio Itamar, morto em 2003, que acendeu em Castro, um dos fundadores do Lira, a chama do projeto.
"O Lira não foi só uma casa de show, mas também um jornal, uma editora. Ocupávamos a praça Benedito Calixto, fazíamos shows ali. Toda essa informação é importante para entender o que foi a vanguarda paulista. Não queria que o filme ficasse entre dois ou três grupos mais conhecidos", disse Castro ao UOL.
A quantidade de "filhos do Lira" pareia com a diversidade e ousadia estilística desses artistas. Vão desde a música cerebral e dodecafônica de Arrigo Barnabé, passando pelas vozes femininas de Ná Ozzetti, Vânia Bastos e Tetê Espinola e pela fase rock tardia, com bandas como Titãs e Ultraje a Rigor como protagonistas.
Para compor esse múltiplo quebra-cabeça, Castro precisou ouvir cerca de 60 personagens, incluindo Arrigo Barnabé, Ná Ozzeti, Luiz Tatit, Nelson Ayres, Susana Sales, Wandi Doratiott, Cida Moreira, Laerte Sarrumor, Elias Andreatto, Maurício Kubrusly, Marcelo Tas, Fernando Meireles e Paulo Caruso, entre outros.
O cartunista Caruso, inclusive, precisou fazer um desenho do anfiteatro no documentário, ideia de Riba, que também usa uma maquete para suprir a falta de imagens internas do teatro, o maior desafio da produção.
Segundo o diretor 90%, dos shows mostrados no filme foram cedidos pelo acervo pessoal do cineasta Fernando Meireles, à época dono da produtora Olhar Eletrônico, vizinha do teatro. O restante vem da TV Cultura e da Bandeirantes, que precisaram ser compradas.
"Tive a sorte de ter todo o material iconográfico guardado. Eu fazia o visual do Lira, a parte gráfica. Tenho uma afetividade com essa área, de comunicação visual. E também tinha informação. Sabia quem tinha gravado no Lira e em que dia, mais ou menos. Quase tudo.”
O documentário, que custou apenas R$ 100 mil e entrou em circuito no festival In-Edit do ano passado, começou a ser produzido em 2008, e foi montado na base do coletivo/colaborativo, a cara do Lira Paulistana, fruto de um tempo em que leis de incentivo pareceriam obras de ficção.
“Tenho um amigo que pagou as primeiras capturas. Tenho uma amiga que pagou a finalização. E eu fiquei mais de um ano por conta disso. Deixei meu trabalho para acabar com isso. Foi uma espécie de fim da minha carreira, já que estou aposentando”, disse o diretor.
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