Filme alemão sobre favela do Rio gera curiosidade no Festival de Berlim
O Brasil tem seis filmes participando desta edição do Festival de Berlim, mas uma produção alemã também se dedica a mostrar aos berlinenses uma parte da realidade brasileira. “Zona Norte”, documentário da alemã Monika Treut, tem como foco um projeto social infantil na comunidade da Maré, no Rio, mas não só: mostra também a difícil realidade de quem vive na região. O filme teve sua première mundial agora à noite, em um cinema na região da Alexanderplatz, recebendo ao final aplausos de uma plateia (majoritariamente alemã) um tanto absorta com o que acabara de ver.
Comunidade com mais de 130 mil habitantes na zona norte do Rio, a Maré é o local onde se localiza a sede do projeto Uerê, criado pela educadora carioca Yvonne Bezerra de Mello. O filme é uma espécie de “continuação” de um outro documentário dirigido pela própria Treut há 15 anos, “Guerreira da Luz”, que narrava a história de “tia Yvonne” – a educadora conheceu grande parte das crianças mortas na Chacina da Candelária, nos anos 90, e também Sandro Nascimento, que ficaria famoso como o sequestrador do Ônibus 174, trágico episódio que acabou em sua própria morte e na de uma passageira do coletivo, em 2000.
No filme de 2000, o foco era na figura de Yvonne e no seu trabalho no Uerê. Em “Zona Norte”, a cineasta reencontra a educadora e parte das crianças auxiliadas pelo projeto uma década e meia mais tarde. “O filme não surgiu como algo do tipo: ‘Passaram-se 15 anos: o que será que aconteceu com aquele projeto?’. Não, nesse tempo todo eu mantive comunicação com o pessoal e retomava contato sempre que tinha a oportunidade”, diz Treut, em entrevista ao UOL logo após a exibição do longa. “Desde o primeiro filme, eu me envolvi e tive muito interesse em saber em que pé andava, o que estava acontecendo no Uerê, e agora resolvi contar em um novo filme”, diz.
No projeto carioca, que sobrevive com doações de empresas privadas, os alunos de famílias de baixa renda participam de atividades diversas, algumas estimulando o desenvolvimento cognitivo e a autovalorização das crianças, em um método desenvolvido pela própria Yvonne. De 2000 para cá, o Uerê ganhou mais abrangência em sua atuação – hoje, 350 crianças recebem aulas no local.
O filme tem instantes comoventes, mostrando como algumas crianças que não tinham nada há 15 anos de alguma forma se “encaminharam” – em grande parte graças ao Uerê. Os depoimentos delas quando pequenas são às vezes confrontados com o delas mesmas agora adultas, e se nem sempre os objetivos de vida da infância foram atingidos com os anos, ao menos a maior parte delas conseguiu um trabalho e constituir família. Um número expressivo passou a frequentar igrejas neopentecostais. “Antes, havia uma [igreja] aqui, outra ali. Agora, estão por todo canto na Maré”, observa a cineasta.
Treut conta que percebeu que o Brasil de 15 anos depois do primeiro filme ainda tem os mesmos problemas básicos, sobretudo no que diz respeito à deficiência no campo da educação e na rotina de extrema violência dos moradores de favelas. Mas ela diz ter notado algumas mudanças positivas. “Pelo menos o problema da fome não está mais lá. Notei que hoje há muito mais lojinhas aqui e ali, na Maré. Antes, havia só um pouco, em uma parte específica da comunidade – no geral eram só casas precárias”, ela diz. “E, como no caso de uma família que aparece no filme, há hoje casas bem limpas, com pais empregados e que cuidam dos filhos. Parece ter surgido uma classe média baixa mais interessada no bem-estar de suas próprias crianças.”
A situação, porém, continua séria. Um dos pontos que mais deixaram a cineasta perplexa (assim como o público alemão) foi a questão da violência policial contra os próprios moradores e presença do exército no papel de “pacificador” da favela, nas UPPs – o filme teve grande parte das cenas gravadas em 2014, o ano da Copa do Brasil. “Para nós [alemães], isso é chocante! Nunca vemos o exército nas ruas na Alemanha, a não em casos extremos, como no resgate de pessoas – aí ele pode ser mobilizado para ajudá-las. Mas nunca para ir contra as pessoas. Quer dizer... até já foi assim, mas nos tempos do nazismo”, ela compara. No filme, em vários momentos há referências à truculência da polícia e do exército na contenção da violência nas favelas.
Se o primeiro filme se debruçava em figuras humanas – a de Yvonne e a das crianças –, em “Zona Norte” há um tom mais politizado, de observação crítica das ações governamentais nas comunidades do Rio. Mesmo os Jogos Olímpicos são constantemente colocados em questão, já que, segundo especialistas ouvidos pelo documentário, são gastos muito altos que dificilmente trarão retorno para a população das favelas. “Eu não quis parecer uma pessoa que sabe tudo. Eu quis antes de mais nada observar uma situação, mas não dizer: ‘A Olimpiada é ruim’. Só queria saber o que estava ao redor da questão olímpica, e no caso da favela, o que percebi foi horrível”.
Treut atua como cineasta desde os anos 80 e tem uma sólida carreira no circuito dos festivais com filmes de temática feminina e LGBT. Após a exibição de “Zona Norte”, na interação com o público, a plateia demonstrou grande curiosidade sobre a questão olímpica. A certa altura do filme, são mostradas cenas de esgoto correndo em águas que desembocam em locais de provas esportivas na Olimpíada; nesse instante, a sala caiu na risada – mas um riso extremamente tenso.
A diretora disse que imagina que o público brasileiro poderá receber seu filme de duas maneiras: alguns gostarão de ver sua visão de “estrangeira”, muitas vezes capaz de observar certas situações com mais clareza; outros deverão se chatear. “Mas só quero deixar uma coisa clara: eu amo o Brasil, amo esse povo. Sinto vontade de chorar quando vejo que as coisas não melhoram”, diz a cineasta.
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