Netflix estreia em Cannes com vaias, aplausos e defesa de Tilda Swinton
A sessão da manhã desta sexta (19) do drama ecológico-juvenil “Okja”, do cineasta coreano Bong Joon-ho, entrou para a história do Festival de Cannes. Porque o filme é o primeiro produzido pela Netflix a disputar a Palma de Ouro, mas não apenas. Além disso, a projeção matinal do longa estrelado por Tilda Swinton foi uma das raríssimas oportunidades de ver a produção em tela grande. A partir de agora, o filme praticamente só poderá ser conferido em telas de computadores, celulares, tablets ou TVs.
E foi uma sessão problemática: ainda nos créditos iniciais, quando o nome da produtora surgiu na tela, a plateia de jornalistas se dividiu entre vaias e aplausos. Pouco depois, mais confusão: percebeu-se que o projetor exibia o filme na janela errada – a testa de Swinton, que aparece logo nas primeiras cenas, surgia cortada pela metade (o topo da cabeça ficava fora do quadro). Sob vaias e gritos, a sessão foi interrompida – só foi retomada 16 minutos depois, finalmente com o formato de imagem adequado à tela grande.
O festival chegou a emitir um comunicado se desculpando pela falha e dizendo que o "incidente foi de responsabilidade única da equipe técnica do festival, que pede profundas desculpas ao diretor e seu time, aos produtores e também ao público".
Ainda assim, parecia uma provocação da Netflix, deixando claro que aquele não foi um filme feito para o cinema – e está bem aí o cerne de toda a grande polêmica de Cannes 2017. A decisão do festival de incluir dois longas da Netflix (o outro é “The Meyerowitz Stories”, de Noah Baumbach), que não vão ser exibidos em salas tradicionais de cinema, indo direto para o serviço de streaming, desagradou os mais puristas, que acham que filme tem que ser visto na tela grande.
Mas o que poderia ter sido a chegada para ficar no calendário das principais premiações do cinema, acabou não passando de uma expectativa frustrada. Diante de muita reclamação (e possivelmente também por pressões de grupos distribuidores e exibidores de filmes das salas tradicionais), Cannes voltou atrás: em comunicado oficial há alguns dias, o evento criou uma nova regra exigindo que, a partir de 2018, o festival exiba apenas produções que serão mostradas em cinemas tradicionais.
O CEO da Netflix, Reed Hastings, ficou contrariado e reclamou em uma rede social. “O establishment está se unindo contra nós. Vejam ‘Okja’ no Netflix em 28 de junho. Um filme incrível que redes de cinema querem impedir de participar do Festival de Cannes”, escreveu.
"Okja” é um filme estranho. Mostra a história de uma grande empresa que cria uma raça de porco geneticamente modificada e tenta emplacar o bicho no mercado alimentício, à base de muito falso marketing ecológico. Mas uma menininha desenvolve laços de afetividade com um dos suínos e luta para evitar que ele se torne alimento. O filme mistura momentos de aventura infantil, com comédia pastelão e instantes de violência gráfica nada voltadas para crianças. Tilda Swinton está excelente como uma empresária supercapitalista, mas o filme é muito desigual. Ainda assim, pelo ar de novidade, parece uma aposta justa ter sido colocado entre os competidores.
Debate
Há dois dias, o presidente do júri competitivo deste ano, Pedro Almodóvar, botou mais lenha na fogueira, ao dizer que seria um paradoxo que um filme que não será exibido em cinemas vença um prêmio como a Palma de Ouro. “Enquanto estiver vivo, vou defender a capacidade de hipnose que uma tela grande tem sobre o espectador”, disse aos jornalistas.
Na entrevista coletiva na manhã desta sexta, o diretor de “Okja” se manifestou. “Estou feliz que ele [Almodovar] vai assistir ao meu filme. Ele pode dizer o que quiser. Falando bem ou mal, o importante é que o debata”, disse, em tom bem-humorado. “A Netflix tem as suas próprias regras e já sabíamos disso tudo desde o início. Mas queríamos que o filme fosse exibido em tela grande pelo menos na Coreia do Sul, além de Cannes, e ficamos muito contentes que eles tenham aceitado essa sugestão”, contou.
A atriz Tilda Swinton também opinou. “Ele [Almodovar] tomou uma posição, e é importante que um membro de júri tenha uma opinião e possa expressá-la. Mas há espaço para todos”, disse. Em seguida, lembrou de uma verdade um tanto inconveniente: “Há milhares de filmes que já foram exibidos em Cannes que jamais ganharam as salas, que ninguém viu”, referindo-se, provavelmente, a produções menos comerciais, que têm dificuldade para encontrar um distribuidor e chegar às salas de cinema.
Já o colega de elenco Jake Gylenhaal foi diplomático: “A plataforma é uma dádiva porque permite que muito mais gente assista ao filme. Mas o debate é essencial”, disse.
Mas a verdade é que nem todos são tão abertos à discussão, e a classe cinematográfica se encontra dividida. Diretores de um cinema mais autoral estão no olho do furacão: se a Netflix significa resolver um problema eterno da dificuldade de levar um filme pequeno para salas, por outro lado pode acabar com o sonho de um cineasta de ver seu trabalho em sua potencialidade máxima em termos audiovisuais.
Força da Netflix
Mas nem todos se importam tanto com isso. O cineasta brasileiro Fernando Coimbra (de “O Lobo Atrás da Porta”) resolveu aderir à nova plataforma. Seu filme mais recente, “Castelo de Areia”, produção internacional com Nicholas Hoult no elenco, estreou (em abril, nos EUA) direto no serviço de streaming.
Coimbra até lamenta o fato de nunca poder ver seu trabalho em uma sala escura, mas a opção foi refletida. “Eu faço filme pensando na tela grande, mas é inegável que a maior parte das pessoas hoje em dia acaba vendo o filme em casa, seja por streaming ou video on demand. Então, a decisão de lançar um filme diretamente na Netflix vem da opção de privilegiar o número de espectadores e de países que o filme vai atingir”, diz Coimbra.
“Um filme original Netflix conta com toda a promoção deles para 100 milhões de assinantes em 200 países. Filmes que não são blockbusters correm sempre o risco de serem esmagados em seus lançamentos no cinema por outros que contam com a força dos estúdios. A Netflix tem essa força, só que dentro da plataforma deles. Então, uma vez consciente disso, não há incômodo”, revela o cineasta.
Cineasta que disputou a Palma de Ouro no ano passado, com “Aquarius”, Kleber Mendonça Filho diz que seu filme, que pode ser visto hoje na Netflix, foi pensado para a tela grande. “[O longa] chegou à Netflix em todo o mundo após lançamentos nos cinemas em mais de 30 países. Esse é o formato tradicional que, aliás, me agrada, pois o filme tem a oportunidade de viver muitas vidas, dos festivais aos cinemas, TV por assinatura, on demand, aviões, streaming, DVD e Bluray, e TV aberta. A participação em festivais e no mundo tradicional do cinema gera também prestígio para um filme, e talvez a Netflix tenha aprendido hoje que terá que mudar sua visão, caso queira esse prestígio via um festival importante como Cannes”, disse.
Cinema protegido na justiça
São muitas as questões que surgem quando o assunto é a maneira em que as pessoas vão consumir filmes no futuro. Mas a mais inevitável é: será que o streaming vai um dia “matar” a sala tradicional? “Sozinho, não, mas pode ajudar a espalhar a ideia de que as salas devem perder a importância, o que me parece algo destrutivo”, acredita Mendonça.
“Salas continuam até hoje pois elas têm janelas de proteção, recebem filmes antes de todos, e, ao meu ver, isso deve ser protegido via lei, como na França. Não se trata apenas de proteger a sala de cinema por questões saudosistas e fetichistas, mas por questões industriais --é um mercado grande-- e também culturais e artísticas. Salas de cinema devem ser preservadas de novos modelos que tenham como objetivo miná-las”, conclui.
Já Coimbra acha que a sala escura não vai acabar nunca. “ [O streaming] não substitui a sala de cinema, que é uma experiência coletiva numa dimensão muito maior do que a sala da sua casa. Assim como o cinema não acabou com o teatro, e a TV não acabou com o cinema, o streaming também não vai acabar com o cinema. E o gesto de Cannes é importante enquanto uma afirmação disso”, diz.
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