Crise política e "divisão de elites" dominam debate de "Aquarius" em Cannes
Com os protestos contra o impeachment que tomaram a sessão de gala, a entrevista coletiva de “Aquarius” no Festival de Cannes não pôde fugir do assunto. Havia quase metade da sala cheia de jornalistas, bastante para um filme sem estrelas americanas ou francesas. Com exceção de uma, todas as perguntas vieram dos jornalistas estrangeiros, curiosos para entender um pouco mais do atual momento no Brasil.
“Foi muito importante aproveitar essa plataforma para expor o que está acontecendo no Brasil. Em outros movimentos, como o protesto pelo fim da ditadura, as pessoas estavam unidas por uma mesma causa. Hoje, também por conta da mídia manipulada, há um país dividido. E há muitos deputados corruptos no Congresso”, respondeu Sonia Braga.
O diretor Kléber Mendonça Filho também aproveitou a oportunidade. “Essa divisão está trazendo o pior dos dois lados, especialmente da direita, com atitudes fascistas. Há deputados que dizem no Congresso que uma mulher não deve trabalhar porque engravida.” Ele também criticou o fim do Ministério da Cultura. “Foram fundos e editais transparentes que financiaram este filme que está agora na Competição de Cannes.”
Kleber explicou um pouco como surgiu a ideia do protesto. “Gostamos da ideia de fazer alguma coisa, mas que não fosse barulhenta ou inadequada para a cerimônia. Daí pensamos em pegar pedaços pequenos de papéis com frases curtas que expressassem a situação do país. Cannes tem muitas câmeras e lentes poderosas”, observou.
Mas a pergunta que melhor resumiu a incompreensão do mundo sobre o Brasil veio de uma jornalista americana do site Huffington Post: se Clara, a crítica de música do filme, protesta contra as construtoras que querem demolir o edifício Aquarius mas também faz parte da elite, como entender a diferença entre uma elite cultural e outra financeira no país?
“Sim, existe uma divisão entre essas duas elites hoje. Agora no Brasil elas são muito diferentes, apesar de virem do mesmo estrato social. Clara vem de uma certa burguesia, mas escrevi o roteiro tendo em mente que ela poderia ser ao mesmo tempo a cliente ideal para comprar um apartamento dessa construtora”, explicou o diretor.
Numa das cenas do filme, Clara briga com o jovem engenheiro encarregado de despejá-la e diz: “O problema do Brasil não é a falta de educação dos pobres. É a falta de educação dos ricos.”
“Vivo no Rio, uma cidade que virou um galpão destinado ao negócio das empreiteiras. Estou acostumado com essas pessoas”, disse o ator Humberto Carrão, mais conhecido das novelas da Globo como “Sangue Bom”, que vive o jovem engenheiro.
Reação
Nesta quarta, a imprensa estrangeira confirmou a aclamação crítica ao filme. No quadro da revista “Screen”, que faz a média de avaliação de 11 dos maiores críticos do mundo todo, “Aquarius” aparece como o terceiro mais bem avaliado até agora, com 13 filmes avaliados – faltam oito até o final da competição. O longa só aparece abaixo da comédia alemã “Toni Erdmann” e do drama americano “Paterson”, de Jim Jarmusch, mas com nota melhor que diretores consagrados como o espanhol Pedro Almodóvar e o britânico Ken Loach.
O jornal “Libération”, um dos três principais diários franceses e o mais lido durante o festival, dedicou a “Aquarius” a matéria principal de uma página e meia de seu suplemento de oito páginas sobre o evento, dando a ele mais espaço do que a filmes como “Julieta”, de Pedro Almodovar, e “Personal Shopper”, com Kristen Stewart. “Kleber Mendonça tece o magnífico retrato de uma sociedade brasileira doente e uma mulher que resiste de pé à selvageria capitalista. Sonia Braga brilha”, diz a abertura do artigo do crítico Julian Gester.
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