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Cineasta Amos Gitai diz ainda acreditar em convivência pacífica de povos

Gabriel Mestieri

Do UOL, em São Paulo

30/10/2013 05h00

Com praticamente toda a obra de uma vida dedicada a discutir a questão árabe-judaica, o cineasta e arquiteto israelense Amos Gitai, de 62 anos, diz que mantém a esperança de que, algum dia, diferentes povos e religiões conseguirão coexistir de maneira pacífica no Oriente Médio. "Se formos muito pessimistas não temos energia para mudar", afirma.

Diretor de filmes como "O Dia do Perdão" (2000) e "Kadosh" (1999), Gitai considera que os envolvidos no conflito no Oriente Médio "precisam se esforçar mais" para melhorar a situação na região. "Eles estão jogando", opina.

Em São Paulo para divulgar seu novo filme, "Ana Arabia", o cineasta recebeu a reportagem do UOL no hotel onde está hospedado na última segunda-feira (28), e falou também sobre arquitetura e Primavera Árabe.

Filmado em um único plano-sequência de 81 minutos (sem cortes), "Ana Arabia" recebeu o prêmio Robert Bresson, dedicado a obras de cunho social e político, no último Festival de Veneza.

O filme mostra uma jornalista (intepretada por Yuval Scharf) que visita uma pequena localidade próxima a Tel Aviv para entrevistar o viúvo da personagem-título, judia nascida em Auschwitz que se casa com um homem árabe após se mudar para Israel.

Leia a entrevista abaixo.

UOL Cinema: De onde surgiu a ideia para "Ana Arabia"?

Amos Gitai: Eu tenho feito documentários sobre a convivência entre judeus, árabes e católicos há bastante tempo. A minha corroteirista Marie-Jose Sanselme ficou sabendo de algumas notícias sobre uma mulher judia que havia nascido em Auschwitz e, após se mudar para uma pequena localidade israelense, se casou com um homem árabe. Então pensei no clima no Oriente Médio atualmente, cheio de ódio e coisas negativas, e imaginei que seria bom fazer um filme sobre o oposto disso, sobre a coexistência entre israelenses e palestinos, sobre casamentos inter-raciais, algo que é quase inimaginável hoje em dia. O Brasil é um bom lugar para falar sobre isso, porque é um dos melhores modelos de diferentes comunidades vivendo junto. A coexistência não é uma coisa angelical. As pessoas podem discordar, e podem vir de lugares diferentes, mas precisam achar um jeito de dialogar.

Por que você decidiu fazer este filme em um único plano-sequência?
Acho que esse é melhor jeito de lidar com isso que acabei de falar no cinema. No cinema você tem dois elementos: a narrativa, ou a temática, e a forma. Eu acho que filmes que são realmente bem-sucedidos fazem as duas coisas. Nós vemos muitos filmes, e infelizmente cada vez mais, que são apenas forma. Eles são vazios de significado. E às vezes também apenas narrativa. Então, se eu quero falar sobre pontes entre pessoas de diferentes origens, com diferentes histórias, sem separações entre judeus, árabes, homens e mulheres, eu não quero ter cortes, quero continuidade. Então, se eu traduzo isso para a linguagem cinematográfica, isso significa apenas um plano-sequência. Sem cortes, com fluidez, com uma unidade temporal contínua. Eu acho que no Oriente Médio nós sofremos muito com uma intoxicação de imagens, porque todas as partes do conflito acham que precisam usar a mídia para demonstrar seus argumentos. Se o cinema, de uma maneira modesta, pode fazer algo no sentido contrário, formular questões, penso que é um bom começo.

  • Reprodução

    Cena de "Ana Arabia"

Fazer o filme desse jeito foi mais difícil tecnicamente?
Sim. Foi um projeto de alto risco, porque não houve etapas intermediárias em que podíamos avaliar o que estava bom, o que estava ruim, o que podia ser cortado. Poderíamos ter acabado sem nada. E o que foi para o filme foi a última vez em que filmamos, a única que estava boa, depois de nove tentativas. É bom porque tem uma certa graça, é delicado.

A coexistência atingida na pequena localidade retratada no filme é o que deveria acontecer em todo o Oriente Médio?
Eu acho que é um lugar interessante também por causa do ambiente. É uma espécie de favela. É um lugar onde as pessoas construíram seu próprio ambiente, não é algo pré-desenhado. Ao mesmo tempo, como em todo o mundo, uma localidade como aquela está ameaçada de extinção, porque o mundo não as quer. O mundo quer algo pré-desenhado. Um dos grandes protagonistas do filme é o ambiente.

O que falta para que o Oriente Médio possa viver em paz?
Eles precisam se esforçar mais. Eles estão jogando. Eu acho que é uma pena, porque é um grande desperdício de vida humana, de recursos. Por um lado aquela região tem um potencial incrível e atualmente está em uma péssima condição.

O sr. acha que ainda é possível que essa condição melhore?
Eu acho que é sempre um erro ser pessimista demais. Se nós olharmos para o que vemos ao nosso redor, podemos ser muito pessimistas. Mas se formos muito pessimistas não temos energia para mudar. Então temos que manter a esperança. A esperança é a motivação para mudança. Se não tivermos nenhuma esperança nos tornamos niilistas.

O que o sr. acha dos resultados da Primavera Árabe?
É a transição de regimes autoritários para regimes democráticos abertos, onde mulheres e minorias também têm direitos. Depois de tanto tempo desses regimes a transição nunca é simples. A gente vê isso não apenas nos países árabes, mas também Rússia, talvez a gente veja na China. Eu não quero julgá-los, espero que as pessoas que começaram essas revoluções consigam o que querem, sociedades mais tolerantes, e que não sigam o caminho do Irã, onde os aiatolás tomaram o poder e instalaram um regime ainda mais autocrático. Mais uma vez, acho que temos que ter esperança.

O sr. é um arquiteto por formação. O que acha da arquitetura em São Paulo?
É uma grande metrópole, uma das maiores do planeta. Caótica e, de certo modo, anárquica. Ao mesmo tempo tem uma energia humana muito forte. Eu acho que a arquitetura daqui tem muito a ver com modernidade, não tanto com beleza.

A cidade é muito feia?
Não. Eu acho, inclusive, que o problema de alguns arquitetos atualmente é que eles querem muito produzir imagens. Para mim a boa arquitetura deve criar um ambiente que é agradável para as pessoas. Uma arquitetura um pouco mais modesta, que não seja o tempo inteiro espetacular. Às vezes eu acho que alguns arquitetos, arquitetos talentosos, ficam com ciúmes de nós cineastas e produzem imagens. Para mim a boa arquitetura não é feita apenas de imagens, mas tem um aspecto social. Precisamos achar casas, espaços abertos. Boa arquitetura é criar um ambiente que é agradável para o dia a dia e não uma cacofonia de sinais. Eu espero que os arquitetos talentosos voltem a uma arquitetura mais modesta.

O sr. Acabou de dizer que às vezes os arquitetos têm inveja dos cineastas. Isso aconteceu com você? Esse foi um dos motivos para migrar para o cinema?
De alguma maneira, sim. Quando terminei os estudos de arquitetura tudo era muito teórico, era muito difícil fazer boa arquitetura. Eu decidi que não queria passar o resto da minha vida projetando lobbies para hotéis, que eu queria fazer alguma outra coisa. Então comecei a fazer filmes.