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Corpo do documentarista Eduardo Coutinho é enterrado no Rio

Fabíola Ortiz

Do UOL, no Rio*

03/02/2014 16h47Atualizada em 03/02/2014 19h53

O corpo do cineasta Eduardo Coutinho foi enterrado às 16h20 desta segunda-feira (3) no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, sob palmas que acompanharam todo o trajeto entre a capela e a sepultura. O documentarista foi velado no mesmo local desde às 10h da manhã. Como última homenagem, o ator Antônio Pitanga puxou um grito de guerra que dizia "companheiro Eduardo Coutinho", e as cerca de 300 pessoas que acompanhavam o velório respondiam "Presente!".

No momento do enterro, os presentes ainda saudaram o cineasta com uma salva de palmas que durou cerca de dez minutos e jogaram pétalas de rosas brancas e vermelhas sobre o caixão. O filho do cineasta, Pedro Coutinho, recebeu as condolências dos amigos e admiradores do pai, mas não quis falar com a imprensa. “É meu pai e eu o amava muito”, disse Pedro, em sua única declaração.

"Foi um choque, estou abalado", comentou o ator Wagner Moura, que não conseguiu chegar a tempo do sepultamento. "Perdemos talvez o mais importante cineasta de todos os tempos. Era uma figura amável, um homem doce, querido". Ele se lembrou dos momentos em que se encontrava com o documentarista em um bar no Jardim Botânico. "Ele ficava fumando cigarro e conversando com todo mundo. A gente esperava que ele fosse morrer por causa do cigarro".

O último a se retirar foi o cineasta Walter Salles. “É difícil falar do Coutinho”, disse, destacando que ele “foi e é o maior documentarista da história do cinema no Brasil. Eu diria que ele era o maior cineasta brasileiro da atualidade. Ele era único e insubstituível”.  Salles disse  que a emoção que perpassou todo o velório e  o  enterro de Coutinho ocorreu porque,  além da obra em si,  todo o seu trabalho foi caracterizado  pelo respeito ao outro. "[Ele foi] um homem que soube ouvir e dar a palavra. Foi um homem de grande generosidade”.

Para o cineasta, os aplausos que ecoaram durante todo o enterro foram para o documentarista, mas também “para o homem atrás da obra”. Salles salientou ainda que era um privilégio ter vivido na época de Eduardo Coutinho. “É a mesma coisa  se você tivesse vivido no tempo de Graciliano Ramos, João Cabral de Mello Neto, Guimarães Rosa. É a mesma coisa da gente falar do privilégio que é hoje viver no tempo da Fernanda Montenegro. O Coutinho é dessas pessoas iluminadas que nos explicavam um pouquinho melhor o que é esse país tão complexo chamado Brasil. E ele  o fazia ouvindo os outros com generosidade”.

Salles  disse que não foi à toa que o processo do velório foi conduzido por personagens dos filmes de Coutinho. “Eles tomaram a voz mais uma vez. E para quem estava naquela sala [capela],  foi uma das coisas mais comoventes e extraordinárias que eu pessoalmente presenciei. Era essa pessoa única que estava sendo aplaudida hoje”, disse.

Velório
Personalidades como o produtor Luiz Carlos Barreto, o cineasta João Moreira Salles, os atores Lázaro Ramos, Paulo José, Camila Morgado e Antonio Pitanga, o diretor de fotografia Walter Carvalho, os músicos Jards Macalé e Adriana Calcanhoto, o poeta Ferreira Gullar, o jornalista Zuenir Ventura e a diretora Amora Mautner prestaram as últimas homenagens a Eduardo Coutinho no cemitério São João Batista.

Barreto disse que Daniel Coutinho, filho de Eduardo Coutinho e apontado como responsável pela morte do diretor, merece compaixão. "Devemos ter compaixão, porque ele terá uma vida difícil. Espero que ele sobreviva. Acho que Coutinho teria esse desejo de ver esse filho amado curado", afirmou.

Barreto relembrou ainda a atuação de Coutinho como militante, um "companheiro nas lutas dos anos 60 contra a ditadura militar". "Sua obra não morrerá", disse Barreto, que se arrepende de não ter realizado nenhuma produção cinematográfica para o amigo. "Ele parte de uma maneira trágica, nenhum de nós imaginávamos. Ele não merecia ter uma morte assim", lamentou, emocionado.

"O melhor documentarista nosso era ele. Era um ser humano admirável, uma criatura especial. Foi uma coisa brutal o que aconteceu. Infelizmente chegou a um desfecho brutal", disse o poeta Ferreira Gullar. "Para o cinema brasileiro, é uma perda muito grande. O legado dele é de filmes feitos com seriedade, inteligência e sensibilidade. Ele era uma pessoa discreta e muito afetuosa", completou Gullar.

"A gente sabia que era um filho problemático, mas Coutinho nunca expôs isso", disse o diretor de fotografia Walter Carvalho ao comentar que pouco sabia da vida íntima do documentarista. "Coutinho talvez fosse uma confluência entre a arte e a técnica. Ele conseguiu penetrar no mundo real e, ao mesmo tempo, com uma visão de vanguarda enquanto linguagem. Coutinho é uma espécie de Graciliano Ramos, não tem como definir. Depois de Coutinho, o resto é silencio", disse Carvalho parafraseando Hamlet. 

Ele lembrou ainda que, na década de 1980, percorreu cerca de 4.000 km por Goiás em um projeto com o cineasta. Esta foi a única produção que realizou com Coutinho.

Também compareceu ao velório Vera Lucia Maciel Savelle, 62 anos, moradora do Edifício Master, prédio que foi tema de um dos documentários mais importantes de Coutinho, em 2002. Vera lembrou com carinho do período de filmagens. "Foi uma amizade boa. O contato com ele foi excelente, tenho uma boa lembrança. [A morte dele] Foi algo que ninguém esperava. Eu vim representando a todos nós", comentou. "Deixa uma saudade muito grande. Ele seguiu com cada um os problemas mais fundos", disse ela.

Tragédia
Coutinho foi morto a facadas
 no domingo (2) em seu apartamento na capital fluminense. Segundo o diretor da Divisão de Homicídio do Estado do Rio de Janeiro, Rivaldo Barbosa de Araújo Júnior, Daniel, filho do diretor, é o autor do crime. "Não há dúvidas de que Daniel é o culpado", disse o delegado em entrevista coletiva. "É a expressão genuína da palavra tragédia."

Daniel, de 41 anos, morava com os pais e foi preso em flagrante delito pela morte de Eduardo Coutinho, 80, e pela tentativa de matar a mãe, Maria Oliveira Coutinho, que está internada em estado grave. Ele será indiciado por homicídio doloso, mas, por possuir quadro de esquizofrenia, um juiz decidirá quais medidas serão tomadas judicialmente. Sua prisão preventiva foi decretada na manhã desta segunda.

Ainda assim, o psicólogo Gilvan Ferreira, responsável por colher o depoimento de Daniel no hospital, diz que é prematuro falar em esquizofrenia ou problema com drogas.

Segundo o delegado, o crime aconteceu por volta das 11h de domingo. O corpo de Coutinho foi encontrado na porta de um dos quartos do apartamento. A esposa do cineasta, que também foi ferida, teria tentado se esconder no banheiro e ligar para outro filho para pedir ajuda. Após cometer os crimes, Daniel também tentou se matar, conclui o delegado. 

O diretor da Divisão de Homicídio disse que Daniel usou duas facas de cozinha nos ataques e, logo após agredir os pais, bateu na porta de um de seus vizinhos e disse: "Eu libertei meu pai, tentei libertar a minha mãe e tentei me libertar". Os bombeiros foram chamados pelo porteiro do prédio e Daniel não demonstrou resistência com a chegada deles, abrindo a porta do apartamento, ainda segundo os policiais.

O filho de Coutinho, que está sob custódia da polícia, passou por uma cirurgia e ainda prestará depoimento. Maria Oliveira Coutinho segue internada já não precisa de aparelhos para respirar e foi transferida para o Hospital Adventista Silvestre. Seu caso ainda inspira cuidados e, em caso de melhora, deve também falar com os policiais. Ela levou cinco facadas ao todo: duas nos seios e três no abdômen, e uma delas perfurou o fígado. A quantidade de perfurações no corpo de Coutinho ainda deve ser revelada pela perícia.

Foram ouvidas quatro testemunhas até o momento e outros moradores do prédio deverão prestar depoimento ainda nesta semana. 

Trajetória

Nascido em 11 de maio de 1933, em São Paulo, Eduardo Coutinho abandonou o curso de direito por uma carreira no entretenimento. Depois de estudar direção e montagem na França e voltar ao Brasil em 1960, Coutinho entrou em contato com o Cinema Novo e o Centro Popular de Cultura (CPC), da UNE.

No CPC, o cineasta começou a trabalhar no que seria considerado seu projeto mais importante: uma ficção baseada no assassinato do líder das Ligas Camponesas, João Pedro Teixeira, com elenco formado pelos próprios camponeses do Engenho Cananeia, no interior de Pernambuco. A produção de “Cabra Marcado para Morrer” teve que ser interrompida depois de duas semanas de filmagens, quando ocorreu o Golpe Militar de 1964 e parte da equipe foi presa sob acusações de comunismo.

O filme só seria completado em 1984, depois de Coutinho reencontrar negativos que haviam sido escondidos por um membro da equipe, e resolveu retomar o projeto como um documentário sobre o filme que não foi realizado e sobre os personagens reais que seriam os atores do primeiro projeto.

Entre 1966 e 1975, atuou principalmente como roteirista de produções como “A Falecida” (1965), “Garota de Ipanema” (1967) e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (1976). Em 1975, Coutinho passou a integrar a equipe do “Globo Repórter”, onde permaneceu até 1984.

Depois de “Cabra”, Coutinho se firmou como o principal documentarista do país, com filmes que privilegiavam pessoas comuns e as histórias que elas têm para contar, como “Santo Forte” (1999), “Edifício Master” (2002), “Peões” (2004) e “Jogo de Cena” (2007). Seu último longa foi “As Canções”, de 2011.

Em 2013, ao completar 80 anos, Coutinho ganhou homenagem na Festa Literária Internacional de Parati e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que organizou uma retrospectiva completa de seus filmes e um livro reunindo textos de e sobre o cineasta.

Na ocasião, Coutinho afirmou ao UOL que o público foge de documentários. "Isso é trágico. Tem uma diferença entre ficção e documentário, e é apenas para a Ancine [Agência Nacional do Cinema]. Documentário é uma palavra maldita. Se o público cheirar documentário, ele foge. Só não foge quem não pode", afirmou.

* Com informações da Agência Brasil