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Mulher de Coutinho lembra de toda a tragédia, diz amiga

Do UOL, em São Paulo*

03/02/2014 18h14Atualizada em 03/02/2014 20h50

Amiga da família desde a época da gravação da primeira parte das filmagens de "Cabra Marcado para Morrer", em 1963, a professora Zélia Briseno, de 76 anos, visitou a mulher de Eduardo Coutinho, Maria das Dores, de 62, no Hospital Municipal Miguel Couto. Zélia disse que Dora está consciente e lembra de toda a tragédia envolvendo a família, inclusive da morte do marido. O filho Daniel, de 41, estava no mesmo ambiente que a mãe na Unidade Intermediária, preso e muito calmo.

Maria das Dores foi transferida para o Hospital Adventista Silvestre, no bairro do Cosme Velho. Antes da transferência, ela já não necessitava de aparelhos para respirar, mas seu estado ainda inspirava cuidados, de acordo com informações da assessoria de imprensa do Miguel Couto.

"Ela estava lúcida o tempo todo. Ligou para o Pedro (filho mais velho do casal), para a irmã e para mim pedindo ajuda. Ela dizia 'me ajuda, estou morrendo'". De acordo com a polícia, Coutinho foi esfaqueado pelo filho no apartamento em que moravam na Lagoa, zona sul do Rio. Maria das Dores levou duas facadas no peito e três no abdome, sendo que uma perfurou o fígado. Ela conseguiu se trancar no banheiro e ligar para pedir ajuda.

Zélia acompanhou de perto a história do casal que se conheceu no Recife, quando frequentavam o Movimento de Cultura Popular. Ela contou que Coutinho admirava a esposa, por quem sempre foi apaixonado. "Ela era uma verdadeira parceira, que dava suporte enquanto ele editava os filmes. Ela é admirável e muito corajosa".

"O Coutinho era um apaixonado pela vida, pelas pessoas que ele chamava de 'meus afetos'. Vou sentir muita falta de nossas conversas", disse, muito emocionada.

Enterro e velório

O corpo de Coutinho foi enterrado às 16h20 desta segunda-feira, no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, sob palmas que acompanharam todo o trajeto da capela até a sepultura. O documentarista foi velado no mesmo local desde às 10h da manhã. 

"Foi um choque, estou abalado", comentou o ator Wagner Moura, que não conseguiu chegar a tempo para o sepultamento. "Perdemos talvez o mais importante cineasta de todos os tempos. Era uma figura amável, um homem doce, querido".

Personalidades como o produtor Luiz Carlos Barreto, o cineasta João Moreira Salles, os atores Lázaro Ramos, Paulo José, Camila Morgado e Antonio Pitanga, o diretor de fotografia Walter Carvalho, os músicos Jards Macalé e Adriana Calcanhoto, o poeta Ferreira Gullar, o jornalista Zuenir Ventura e a diretora Amora Mautner também prestaram as últimas homenagens a Eduardo Coutinho no cemitério São João Batista.

Barreto disse que Daniel Coutinho, filho de Eduardo Coutinho e apontado como responsável pela morte do diretor, merece compaixão. "Devemos ter compaixão, porque ele terá uma vida difícil. Espero que ele sobreviva. Acho que Coutinho teria esse desejo de ver esse filho amado curado", afirmou.

"A gente sabia que era um filho problemático, mas Coutinho nunca expôs isso", disse o diretor de fotografia Walter Carvalho, ao comentar que pouco sabia da vida íntima do documentarista. Ele lembrou ainda que, na década de 1980, percorreu cerca de 4 mil quilômetros por Goiás em um projeto com o cineasta. Esta foi a única produção que realizou com Coutinho.

Também compareceu ao velório Vera Lucia Maciel Savelle, 62 anos, moradora do Edifício Master, prédio que foi tema de um dos documentários mais importantes de Coutinho, em 2002. Vera lembrou com carinho do período de filmagens. "Foi uma amizade boa. O contato com ele foi excelente, tenho uma boa lembrança. [A morte dele] Foi algo que ninguém esperava. Eu vim representando a todos nós", comentou. "Deixa uma saudade muito grande. Ele seguiu com cada um os problemas mais fundos", disse ela.

Tragédia
Coutinho foi morto a facadas
 no domingo (2) em seu apartamento na capital fluminense. Segundo o diretor da Divisão de Homicídio do Estado do Rio de Janeiro, Rivaldo Barbosa de Araújo Júnior, Daniel, filho do diretor, é o autor do crime. "Não há dúvidas de que Daniel é o culpado", disse o delegado em entrevista coletiva. "É a expressão genuína da palavra tragédia."

Daniel, de 41 anos, morava com os pais e foi preso em flagrante delito pela morte de Eduardo Coutinho, 80, e pela tentativa de matar a mãe, Maria Oliveira Coutinho, que está internada em estado grave. Ele será indiciado por homicídio doloso, mas, por possuir quadro de esquizofrenia, um juiz decidirá quais medidas serão tomadas judicialmente. Sua prisão preventiva foi decretada na manhã desta segunda.

Ainda assim, o psicólogo Gilvan Ferreira, responsável por colher o depoimento de Daniel no hospital, diz que é prematuro falar em esquizofrenia ou problema com drogas.

Segundo o delegado, o crime aconteceu por volta das 11h de domingo. O corpo de Coutinho foi encontrado na porta de um dos quartos do apartamento. A esposa do cineasta, que também foi ferida, teria tentado se esconder no banheiro e ligar para outro filho para pedir ajuda. Após cometer os crimes, Daniel também tentou se matar, conclui o delegado. 

O diretor da Divisão de Homicídio disse que Daniel usou duas facas de cozinha nos ataques e, logo após agredir os pais, bateu na porta de um de seus vizinhos e disse: "Eu libertei meu pai, tentei libertar a minha mãe e tentei me libertar". Os bombeiros foram chamados pelo porteiro do prédio e Daniel não demonstrou resistência com a chegada deles, abrindo a porta do apartamento, ainda segundo os policiais.

Trajetória

Nascido em 11 de maio de 1933, em São Paulo, Eduardo Coutinho abandonou o curso de direito por uma carreira no entretenimento. Depois de estudar direção e montagem na França e voltar ao Brasil em 1960, Coutinho entrou em contato com o Cinema Novo e o Centro Popular de Cultura (CPC), da UNE.

No CPC, o cineasta começou a trabalhar no que seria considerado seu projeto mais importante: uma ficção baseada no assassinato do líder das Ligas Camponesas, João Pedro Teixeira, com elenco formado pelos próprios camponeses do Engenho Cananeia, no interior de Pernambuco. A produção de “Cabra Marcado para Morrer” teve que ser interrompida depois de duas semanas de filmagens, quando ocorreu o Golpe Militar de 1964 e parte da equipe foi presa sob acusações de comunismo.

O filme só seria completado em 1984, depois de Coutinho reencontrar negativos que haviam sido escondidos por um membro da equipe, e resolveu retomar o projeto como um documentário sobre o filme que não foi realizado e sobre os personagens reais que seriam os atores do primeiro projeto.

Entre 1966 e 1975, atuou principalmente como roteirista de produções como “A Falecida” (1965), “Garota de Ipanema” (1967) e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (1976). Em 1975, Coutinho passou a integrar a equipe do “Globo Repórter”, onde permaneceu até 1984.

Depois de “Cabra”, Coutinho se firmou como o principal documentarista do país, com filmes que privilegiavam pessoas comuns e as histórias que elas têm para contar, como “Santo Forte” (1999), “Edifício Master” (2002), “Peões” (2004) e “Jogo de Cena” (2007). Seu último longa foi “As Canções”, de 2011.

Em 2013, ao completar 80 anos, Coutinho ganhou homenagem na Festa Literária Internacional de Parati e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que organizou uma retrospectiva completa de seus filmes e um livro reunindo textos de e sobre o cineasta.

Na ocasião, Coutinho afirmou ao UOL que o público foge de documentários. "Isso é trágico. Tem uma diferença entre ficção e documentário, e é apenas para a Ancine [Agência Nacional do Cinema]. Documentário é uma palavra maldita. Se o público cheirar documentário, ele foge. Só não foge quem não pode", afirmou.

* Com informações da Agência Estado